Vida, tristeza e morte de Pereira da Silva
Senhores Acadêmicos,
Entrando nesta Casa, recolho a herança ilustre de seis vultos admiráveis da história do nosso pensamento – todos eles homens de Cultura, homens de sensibilidade e, sobretudo, homens de fé. Criada por José Veríssimo, sob a invocação do nome de João Francisco Lisboa, a Cadeira 18 foi ocupada, sucessivamente, primeiro por dois prosadores – Homem de Melo e Alberto Faria, e a seguir por dois poetas – Luís Carlos e Pereira da Silva. Fundada, pois, sob o signo da Prosa, duas vezes apenas foi ela visitada pela Poesia – quando pertenceu aos autores de Colunas e Solitudes, que eram, de resto, na imagem do Sr. Adelmar Tavares, “dois ramos de uma só árvore, duas vagas do mesmo oceano”. Por uma singular coincidência, particularmente grata ao meu coração, seu fundador era filho da Amazônia, e seu último ocupante, do Nordeste.
Itinerário da Cadeira 18
Vindo agora sentar-me nela – e sendo, como sou, um pouco das duas regiões, do Nordeste, pelo nascimento, e da Amazônia, pela formação, eu me sinto bem à sombra das tradições dos meus antecessores, cujas raízes espirituais se nutriam nos mesmos húmus que alimentaram as raízes do meu espírito. E como por ela passaram também dois homens do Sul – Homem de Melo e Alberto Faria, e um da Metrópole – Luís Carlos, a Cadeira 18 pode catalogar-se entre as mais autenticamente brasileiras desta Academia, por ter sido ocupada por escritores de quase todos os quadrantes do Brasil. Ao tomar posse dela, portanto, acodem-me ao pensamento, numerosas e múltiplas, evocações de quase todas as regiões em que se fragmenta, sem dividir-nos, a grande massa geográfica da nossa terra: do Extremo-Norte, como do Nordeste, do Centro, como do Sul. Tenho diante dos olhos um estuário generoso, onde vieram confluir, para o milagre unitário de uma fusão maravilhosa, águas de todas as vertentes do Brasil... O itinerário espiritual da Cadeira 18 – repito-o com alegria – é eminentemente brasileiro: Pará e Maranhão, Paraíba, São Paulo e Rio... agora, Rio Grande do Norte. Todos os climas e todas as fisionomias todas as paisagens e tendências, todas as “ilhas”, em suma, como prefere dizer o Sr. Viana Moog, deste imenso arquipélago cultural do Brasil. Mas, no fundo, que homogênea e compacta unidade! Aos seis nomes tutelares da Poltrona 18 identificou-os e confundiu-os sempre Uma vocação comum: a vocação do amor e do serviço da Pátria. João Francisco Lisboa, como historiógrafo e sociólogo, como jornalista e doutrinador social, fazendo a pintura e a crítica dos nossos costumes políticos, preserva e defende as melhores tradições de liberdade, de independência, de autonomia da nossa terra; professor, crítico e historiador da nossa literatura, Veríssimo defende e preserva as mais opulentas riquezas do nosso patrimônio cultural; a Homem de Melo, nos postos de governo, nas páginas de história, na cátedra do Pedro II e nos mapas do Brasil, cabe trabalhar pela nossa unidade política e pela nossa unidade geográfica; o jornalista, o erudito, o professor de humanidades, que foi Alberto Faria, investigador incansável do nosso folclore, luta incessantemente pelo prestígio das nossas tradições populares e trabalha sem pausa, na imprensa e na cátedra, pela formação das novas gerações; Luís Carlos e Pereira da Silva, pelo prodígio da Poesia, contribuem para o enriquecimento do patrimônio da nossa sensibilidade lírica. Todos eles, em última análise, bons brasileiros que foram, trabalharam sempre, sem hiatos, com o pensamento e o coração, pela grandeza e pelo prestígio do Brasil. E representaram, ao mesmo tempo, as duas grandes forças que, como notou o Sr. Alceu Amoroso Lima, presidiram à nossa evolução intelectual: a tradição e a criação. Destarte, a Cadeira 18 é um singular exemplo daquele milagre que Machado de Assis considerava atribuição principal da Academia: conservar no meio da federação política a unidade literária.
Amor e intimidade da terra
Mas o que principalmente identificou os ocupantes desta Cadeira, não obstante as suas aparentes diferenças e antagonismos, foi o sentimento e a intimidade da terra, que todos eles, na imprensa e no livro, na cátedra e na tribuna, nas atividades profissionais e nos postos administrativos, souberam transformar em amor ardente e compreensivo do Brasil. Tantas expressões do nosso pensamento político e literário – Lisboa e Veríssimo, Homem de Melo e Alberto Faria, Luís Carlos e Pereira da Silva – interessados todos eles na solução dos problemas nacionais, temperaram o amor às coisas brasileiras no convívio da nossa gente e na contemplação da nossa terra. João Francisco Lisboa, filho e neto de fazendeiros, nascido em Pirapema, à margem do Itapicuru, depois de ter feito o estudo das primeiras letras em São Luís, retornou aos 11 anos de idade à fazenda dos avós, onde viveu a puerícia e a adolescência, no desejo de retemperar a saúde débil e o corpo franzino, “bebendo nos pátrios lares o ar puro de nossas matas”, e aí aprendeu o amor do campo e do camponês, segundo o depoimento de Antônio Henriques Leal. A sua vida, a um tempo simples e exemplar, vida modesta de provinciano austero, foi toda ela devotada ao serviço do Brasil. O autor dos Apontamentos para a História do Maranhão foi um implacável, um corajoso, um lúcido comentador dos costumes brasileiros. Analisando com severo espírito crítico a vida partidária e administrativa do Maranhão do seu tempo, ele, em verdade, fixou o panorama de todo o Brasil – e do Brasil de todos os tempos... Conduzindo-nos, no Jornal de Timon, a um erudito passeio através das eleições da Grécia e de Roma, da França e da Inglaterra, dos Estados Unidos e até da Turquia, Lisboa nos deu perfeito resumo dos “costumes políticos e dos processos eleitorais, não direi do Brasil daquele tempo, mas de toda a América latina, em todo este longo período, que ainda perdura, de aprendizagem democrática”, como observou muito bem Pedro Lessa. O autor da Vida do Padre Antônio Vieira tão admirável sempre na clara razão, na atrevida coragem cívica, na aguda sensibilidade de escritor, além de ter sido modelo de bom brasileiro, foi modelo também da arte de bem escrever – de estilo límpido, deserto, conciso e terso. Tendo feito, com seus estudos históricos, um corte vertical na história da colônia e do Primeiro Reinado, Lisboa revelou-nos, entre outras coisas, que nós não descendemos propriamente de degredados e criminosos, porque somos apenas inocentes bisnetos de feiticeiros e alcoviteiros, o que afinal de contas é muito mais consentâneo com algumas constantes psicológicas da formação nacional, como o nosso espírito de submissão e adesão, e a debilidade das nossas convicções e idéias... Jornalista militante, precursor, com o Jornal de Timon, daquele gênero afortunado em nossa língua, que Ramalho e Eça, com As Farpas, mais tarde, haviam de tornar tão famoso e popular, João Francisco Lisboa lutou infatigavelmente, sem pausa e sem temor, por algumas idéias fundamentais, que ainda hoje devemos defender no Brasil. Lisboa foi essencialmente um espírito justo e livre, sempre a serviço da liberdade e da Justiça. Sua pregação foi a da verdade, a da independência, a do respeito à dignidade da pessoa humana e da livre manifestação do pensamento. Esteve, por isso, permanentemente em luta, e suas mais belas batalhas ele as pelejou contra a opressão e contra a violência, pela Abolição, pela verdade eleitoral, pela justiça social e política, numa compreensão admirável da vocação democrática do Brasil. O fim primário do Jornal de Timon, segundo confessa o próprio Lisboa, foi a pintura dos nossos costumes políticos. Queria Lisboa – ai de nós! – que os postos do governo e da administração coubessem sempre aos que se mostrassem mais capazes pela inteligência, pelo saber e pelo caráter, para que o país fosse conduzido com segurança, lucidez e austeridade aos mais altos e felizes destinos. E diante dos poderosos, aconselhava ele que não nos desfizéssemos em reverências, lisonjas e humilhações, para que, passado o período de mando, não nos desentranhássemos tampouco, por vingança ou ressentimento, em aleivosias, calúnias e recriminações serôdias.
É incontestável a atualidade permanente das observações de João Francisco Lisboa, no Brasil. Nós mudamos pouco, no correr dos tempos, e a unidade nacional afigurasse-nos mais nítida, sobretudo quando atentamos na semelhança e continuidade dos nossos defeitos... Esse o denominador comum da vida nacional, determinando a permanência de uma fisionomia peculiar que se mostra inalterável no tempo e no espaço...
Mas a verdade é que João Francisco Lisboa alimentou o seu amor ao Brasil de nourritures terrestres. Ele teve, por amor da terra, a inquietação do homem, e fez de toda a sua obra um constante exercício de introspecção nacional, honesto, lúcido e sereno. Esse o sentido profundo da sua obra; essa a lição ilustre da sua vida. Nem outro foi o sentido, nem outra foi a lição, da obra e da vida do fundador da Cadeira 18.
José Veríssimo, ele também, formou o espírito no amor e na intimidade do solo brasileiro. Filho do Extremo-Norte, como Lisboa, José Veríssimo nasceu em Óbidos, a velha cidade da margem esquerda do rio Amazonas, a duas léguas da antiga aldeia dos Pauxis, à sombra do forte em cuja guarnição seu pai servia como médico militar. Partindo cedo para Manaus e Belém, onde fez seus estudos primários, logo depois Veríssimo veio para o Rio, a fim de iniciar o curso secundário, matriculando-se sucessivamente no Colégio Pedro II, no Vitório e, por fim, na Escola Central. Mas aos 19 anos, acometido de moléstia grave, abandonou o curso de Engenharia, e, como João Francisco Lisboa, voltou à plaga natal, em cujo clima procurava também restaurar as energias debilitadas. Identificado com a natureza e o povo do Pará, Veríssimo, ao rever Óbidos, experimenta um alvoroço de renovação, “correndo pelas praias, trepando nas árvores, com a santa alegria da infância”. Convalescendo na rica atmosfera da Mesopotâmia, sentindo “a saudade de um tempo que já foi e não vem mais”, Veríssimo, na contemplação magoada do melancólico espetáculo da decadência e da ruína da velha cidade em que nasceu, sente acordar no espírito o amor da terra e da gente, que nunca mais o abandonaria. Coincidira com o nascimento dele o aparecimento de A Sentinela Obidense – primeiro jornal que se publicou na Amazônia – o que é para Veríssimo um bom augúrio, pois sua vida civil e literária começa exatamente pela atividade jornalística, nas colunas de um periódico de Belém – o Liberal do Pará, onde publica suas Viagens no Sertão, relato do que vira em Óbidos e Monte Alegre. À evocação do estilista ilustre do Jornal de Timon, Veríssimo via na sua obra a afirmação da unidade do sentimento nacional, que se mantinha íntegra e compacta de 1831 até nossos dias. E assim como Lisboa, inspirado no amor e no conhecimento da sua terra e da sua gente, nos dera aquelas páginas admiráveis, de colorido local tão típico, que são A Festa de N. S. dos Remédios, Veríssimo ia inaugurar a sua carreira literária com As Raças Cruzadas do Pará, em que estudou “as populações indígenas e mestiças da Amazônia” (seu titulo definitivo). A seguir publica: Quadros Paraenses, em que fixou usos e costumes do seu Estado; Cenas da Vida Amazônica, que reproduzem com exatidão fotográfica a natureza, os tipos, as lendas e a fala daqueles mundos de espantos, terrores e assombrações, sua única tentativa de ficcionista, cujo valor literário Machado de Assis considerava injusto subestimar; A Pesca na Amazônia, Pará e Amazonas e Interesses da Amazônia – livros e monografias, todos esses, além de numerosos artigos e ensaios em que estudou os costumes, a língua, o colorido, a geografia, os interesses econômicos da gleba e do povo que sempre amou com envolvente ternura. Antes de vir a ser o crítico austero e o historiador ilustre da Literatura Brasileira, Veríssimo foi o regionalista apaixonado, que amou, sentiu e descreveu a sua Província. Dele se poderia dizer o que ele mesmo disse de João Francisco Lisboa: brasileiro de origem e nascimento, brasileiro pelas íntimas fibras da sua alma e pelo mais profundo do seu sentimento, Veríssimo teve a paixão que foi afinal a de todos os ocupantes desta Cadeira –, a de um Brasil grande e feliz, respeitado e livre, consciente de sua unidade moral e de seu destino político no concerto do mundo americano. Não foi diferente o pensamento do Barão Homem de Melo. Nascido no interior de São Paulo, em Pindamonhangaba, ele aprendeu a amar o Brasil amando o barro humilde do seu município, para servir-me de uma imagem cara ao meu fraterno e querido amigo Ribeiro Couto. Professor e historiador, geógrafo e homem público, o roteiro de sua carreira civil é exatamente o da unidade nacional. Inaugurando a atividade política como presidente do Conselho Municipal de Pinda, e sendo, sucessivamente, Presidente das Províncias de São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul e Bahia, é ele quem completa a ligação ferroviária do Rio com São Paulo, e em toda a sua vida pública não faz senão amar a terra e a gente do Brasil, sem lhe distinguir fronteiras nem diferenças. O terceiro ocupante desta Cadeira amou e conheceu também o “barro do município”: fez seu tirocínio de jornalista e professor em São Carlos e em Campinas, e foi no convívio da gente viril e operosa do interior paulista que aprendeu a amar o nosso cancioneiro, recolhendo-lhe os mais ricos documentos.
Luís Carlos, embora nascido no Rio, logo que se formou em Engenharia, partiu para o sertão de São Paulo e Minas, e foi, igualmente, no trabalho do campo, em Mariana, que formou o seu espírito profissional e a sua generosa sensibilidade lírica. Engenheiro da Central do Brasil, privando com as doces populações mineiras das estaçõezinhas calmas da Montanha e lidando com os funcionários modestos e honrados daquela grande estrada, Luis Carlos temperou o aço autenticamente brasileiro do seu caráter e o ouro puro do seu coração. Foi o sertão de Minas, na sua topografia, na sua riqueza, na bondade e na austeridade da sua honrada gente, que lhe ensinou o amor e o orgulho do Brasil.
Introvertido e solitário, e, por isso mesmo, destituído de maior interesse pela paisagem, Pereira da Silva, filho do Nordeste, nascido e criado numa aba áspera da Borborema, formou, entretanto, o espírito no amor e na intimidade da natureza. Nenhum deles conheceu aquele “narcisismo geográfico” que foi o fraco dos brasileiros que viveram longos anos no deslumbramento platônico do solo belo e rico da Pátria; todos eles, porém, tiveram a inquietação da distância, que impeliu sempre o brasileiro para a unidade, apesar de aparentemente facilitar-lhe a fragmentação e a diferenciação. Todos eles tiveram o instinto da nacionalidade, e amaram a terra em função do homem. O contado da terra amplia no sentido vertical e no sentido horizontal o nosso sentimento brasileiro: torna mais profunda e extensa a nossa compreensão do Brasil. Conhecendo-a na sua mais funda intimidade, amamos o homem, porque aprendemos a avaliar as dimensões do seu esforço. Ocupando espaços, contraindo distâncias, domando selvas, torrentes e serras, conseguimos reter nos olhos e no coração tudo o que o Brasil possui de belo e de grande, embora, ai de nós! sem esquecer também suas misérias e suas tristezas... O Brasil vem vindo, do fundo da sua História, a passos talvez lentos. Mas, com que orgulho e firmeza tem ele sabido caminhar nas encruzilhadas mais difíceis destes curtos séculos de vida nacional! Enquanto Deus fazia a terra, numerosa e bárbara, o homem ia, silenciosamente, construindo a civilização: empurrando as florestas, violando os sertões, semeando as cidades, fazendo recuar os rios e os lagos, recuperando os espaços, rasgando as estradas, como queria o poeta, com a planta do pé... Só conhecendo a terra – a terra a um tempo bela e agressiva, generosa e hostil, imensa e indomável – é que nós podemos compreender e amar o trabalho do homem brasileiro, e estimar, na justa medida o milagre da nossa unidade, da nossa formação, da nossa evolução econômico-social. Apesar do trabalho servil e da economia colonial – Deus louvado! – chegamos onde estamos. Nenhum povo no mundo conseguiu até hoje criar núcleos de civilização e Cultura, na mesma latitude em que criamos Belém e Manaus, na linha do Equador! Esta certeza nos conforta e anima, enchendo-nos o coração de alegria e confiança.
Psicologia brasileira do bairrismo
É por isso que o brasileiro tem, tão vivos e tão grandes, dentro do peito, o orgulho e o amor das suas cidades e das suas províncias – essa espécie de vaidade coletiva que, sendo bairrismo, é, em última análise, na soma total da sua ternura, uma forma ardente de nacionalismo e patriotismo irredutível. O próprio José Veríssimo, cuja pena carrancuda e seca, usava conta-gotas para os adjetivos, teve na vida um instante de exaltação verbal ao fazer, nas festas comemorativas do centenário de Belém, o elogio da sua terra e da sua gente!
Das formas do amor da Pátria a mais espontânea, mais natural e, direi até, mais legítima, é o bairrismo: o afeto ingênuo, quase inconsciente, ao torrão onde nascemos, onde experimentamos as primeiras sensações que nos lembrem onde fica a paisagem que impressionou o nosso olhar móbil de crianças, onde corre o rio cuja água nos batizou e se elevam as árvores a que primeiro trepamos, onde vive a gente que primeiro conhecemos e amamos, onde surgem, após longos anos passados, as primeiras imagens queridas à nossa memória e para onde voltam as saudades dos tempos que não voltam mais. Este torrão natal, pedaço da grande terra que é a pátria política, não é privilégio de nenhum de nós. A Nação a que pertencemos compõe-se de inúmeros quejandos torrões, e cada um destes é para o nele nascido o predileto. Este amor, porém, sente-se ele próprio como estreito e incompleto. Ao pé, em volta, além da nossa terra natal, ficam outras terras, continuação da nossa, onde vive gente que sabemos nossa irmã, da mesma origem, da mesma fala, do mesmo sentimento que nós, e que, como nós, quer conservar a terra em que nasceu. É esta sucessão num território, geográfica, histórica e moralmente contínuo, de gerações vivas e mortas, ligadas pelo mesmo sentimento de comunidade e origem e pela mesma vontade de vida coletiva e de mútua união, que faz a Pátria. O amor da Pátria, e ainda o patriotismo, que é por assim dizer, o seu aspecto político, germina desta semente, o amor do torrão natal, ou, se quiserem, o bairrismo.
Há um fato que é sintomático da ingênua sinceridade do bairrismo brasileiro: é o hábito de superestimarmos as capitais dos nossos Estados. Cada brasileiro, embora reconhecendo o primado do Rio – orgulho e deslumbramento de todos eles – considera sempre a Capital de sua Província a cidade mais bonita do Brasil. Guardo, a propósito, uma reminiscência pessoal, que ilustra perfeitamente essa observação corriqueira e fácil. Em 1920, vindo do Pará para o Rio, viajamos num velho e lento navio do Lloyd, em companhia de brasileiros de todos os Estados do Norte. E todos eles sem exceção, naquelas conversas mornas de tombadilho, tão compridas e enfadonhas, consideravam as suas capitais as mais lindas cidades do País. Os argumentos utilizados nas intermináveis discussões eram, sistematicamente, os mesmos... – e as polêmicas a bordo repetiam-se vivas, diárias e cacetissimas, sobre o eterno tema. Para o amazonense, depois do Rio, a mais linda cidade do Brasil era Manaus. Só o Teatro Amazonas... Já o paraense optava por Belém. Tínhamos ali o Teatro da Paz, o Largo da Pólvora, o Museu Goeldi, o Bosque Rodrigues Alves... Não havia nada igual no resto do Brasil! Mas o cearense achava que Fortaleza... Oh! a Praia de Iracema! Como o pernambucano reivindicava para o Recife, com suas pontes e seus lentos rios, e o baiano para Salvador, com suas 365 igrejas e suas inumeráveis tradições, essa ingênua primazia. Viajava conosco a bordo uma senhora da Paraíba, que até então se conservara calada, sem participar dos debates, numa atitude neutra e discreta. Certa vez aventurei, dirigindo-me a ela timidamente, este imprudente comentário: “Nós, felizmente, estamos isentos dessas discussões, porque não podemos pleitear para as nossas humildes cidadezinhas o privilégio dessa competição...”
A senhora paraibana, acendendo nos olhos um súbito e inesperado fulgor de entusiasmo, replicou-me com ar polemico: “O senhor está mas é muito enganado! A Paraíba, depois que o Dr. Epitácio assumiu a Presidência da República, tem progredido extraordinariamente, e hoje, a não ser o Rio...”
Sorri melancólico, uma confissão silenciosa de derrota nos olhos. Quedara-me solitário e humilhado, porque Natal – que naquele tempo ainda não havia recebido a visita do progresso ianque e ainda não possuía a base de Parnamirim (só por isso perdi a partida, é claro...) –, ficava sendo afinal a única cidade humilde e modesta do Brasil, sem pretensões e sem glórias... Mas o bairrismo, dentro de mim, recompunha-lhe, com ternura comovida – com a particular ternura com que se recorda uma mãe humilde e pobre, ou um filhinho feio e doente – na emoção daquele encontro na distância e no tempo – a fisionomia alegre e pitoresca. E revendo-a de longe, eu recapitulava tudo o que ela possuía de melhor e de mais belo para os meus olhos enternecidos, tudo aquilo que espelhava as graças peculiares da minha terra – as brancas praias empoladas de dunas e embandeiradas de coqueiros; os vales festivos, onde os canaviais ondulam ao vento; as ásperas serras em cujas garupas de granito o panasco põe uma carícia verde de veludo; os santos, como João Maria e Sinfrônio Barreto; os heróis, como Camarão e Miguelinho; os poetas, como Auta, Segundo, Gotardo, Itajubá. Doces lembranças revoam no nosso espírito e o nosso coração se dilata ao som de vozes familiares...
A nossa pequenina e querida terra, que hoje, aliás, como naquele instante, de novo evoco enternecidamente, nunca está na verdade longe de nós, porque a temos sempre no coração, presente e palpitante. É que lá ressoam as doces falas da nossa gente, lá se perdem as melhores recordações da nossa infância, lá dormem os nossos mortos queridos, lá vivem, heróicas e belas, as tradições ilustres dos nossos maiores, a esperança e o labor dos nossos irmãos.
Regionalismo - Fator de unidade nacional
O fenômeno não é difícil de explicar, nem de compreender. A infância – época em que fazemos as aquisições e constituímos as reservas mais importantes do nosso subconsciente – é uma idade excepcionalmente receptiva para o que ouve e para o que vê. E aquilo que se vê e ouve na infância – ah! velho Freud! – fica guardado nos recessos mais fundos e mais obscuros da nossa memória, para o resto da vida. A retina da criança é uma placa ultra-sensível, que fixa tudo quanto em torno se move ou passa: os fatos, as pessoas e as coisas. Como o rio impetuoso do sertão, que descendo para o mar leva no túrgido ventre de águas convulsas e bravias os resíduos da terra e as imagens do céu, todos nós trazemos para a vida a doce saudade da nossa terra e a palpitante lembrança da nossa gente.
Na agitação do mar, como no tumulto da vida, todas as lembranças e todas as saudades se diluem, se perdem e se apagam... Mas isto não impede que nas novas imagens que depois nos vêm povoar as pupilas desencantadas, e nas novas recordações que nos vêm enriquecer a memória inquieta, sorria, vez por outra, sutil e envolvente, a grata saudade daquelas paisagens remotas e daquelas gentes amigas que nos encantaram primeiro os olhos e o coração... Nesses instantes felizes de evocação, “quando a alma parece uma água morta refletindo clarões crepusculares”... do poço fundo da lembrança emergem, como aquela cidade submersa de Renan, que nas claras manhãs de bonança mostrava aos pescadores da Bretanha as suas torres atrevidas e os seus sinos sonoros, as paisagens mais lindas e as vozes mais harmoniosas da nossa terra.
É essa, talvez, a explicação do fenômeno lírico do regionalismo. Porque o regionalismo, em última análise, se reduz a isso: poesia. É um fenômeno sobretudo de natureza sentimental. E eu não sei se é ele que faz o nosso lirismo, ou se é o nosso lirismo que o gera e alimenta. De qualquer forma, o regionalismo faz parte do ritmo da realidade brasileira e nos tem sido de uma enorme utilidade.
Paulo Prado, no Prefácio de Paulística, vê nesses regionalismos que aparentemente nos fragmentam e separam, não só o segredo da unidade do país, senão também a segurança da conservação da soberania nacional. A resistência ao embate dos imperialismos estrangeiros, segundo ele, dependerá em grande parte da legítima expansão dos regionalismos. São eles “que constituem a parte viva e plástica em que se conservam e se desenvolvem a variedade e a originalidade de complexo nacional”. “De fato, em tão vasto território como o nosso, seria insensatez nivelar as nossas diferenciações, para favorecer uma centralização que significaria, dentro de pouco tempo, o ódio, a revolta, o desastre final.” E ele vê nítido o problema quando propõe, com Bryce, o amor da independência local e da autonomia, contrabalançado pelo orgulho comum da história. “Duas fidelidades, dois patriotismos.”
Nem pode ser outra a interpretação brasileira do regionalismo. Porque este tem sido, invariavelmente, entre nós um fator espiritual de unidade. Do Rio Grande – onde ele foi mais vigoroso, característico e profundo até o Pará, onde, embora raras foram marcantes as suas manifestações –, o regionalismo tem traçado o mapa sentimental do Brasil, determinando as coordenadas da nossa sensibilidade e reproduzindo, com acentos tônicos de exaltada sinceridade, as imagens mais típicas e as vozes mais claras da nossa terra e da nossa gente. De Sousa Júnior, há tempos, mostrava-se agastado ante a insistência com que no Rio se acoimavam de regionalistas os escritores do Sul.
Os escritores do Norte e do Nordeste podem escrever – e escrevem – sobre a seca, sobre o inferno verde, sobre o açúcar, sobre a borracha. O homem e a terra. A terra e o homem. Os problemas são regionais? A linguagem dos personagens e, freqüentemente dos próprios escritores, é regionalíssima? Não importa... Para todos os efeitos, os “escritores brasileiros” são eles Regionalistas, somos nós...
Mas De Sousa Júnior não tinha razão. Regionalistas somos nós todos – e todos nós, em última análise, os escritores do Norte, como os do Centro e os do Sul, somos apenas brasileiros – e mais brasileiros do que sempre quando fazemos... literatura regional. O que não impede sejamos ao mesmo tempo humanos e universais. Embora reconhecendo, com o Sr. Alceu Amoroso Lima, que o regionalismo foi superado em face do nacional, como o nacionalismo fora superado em face do universal. a verdade é que o nosso regionalismo é uma soma e uma síntese de todas as qualidades e de todos os defeitos que entram na composição, tão complexa e singular, da psicologia coletiva do povo brasileiro. Remy de Gourmont observou que há nas tradições literárias um duplo rio. O primeiro corre à flor da terra; o segundo, oculto, flui silencioso e insuspeitado. Os dois correm sobre o mesmo leito... O rio subterrâneo e o outro enriquecem com suas águas o delta da nossa literatura regional.
O fundador desta Cadeira e o seu atual ocupante, talvez em função das mesmas solicitações psicológicas, e, sem dúvida em virtude de idêntico movimento de recuo sentimental, naquele “estado de saturação nostálgica que atinge um nível de necessidade de expansão jamais superado”, fizeram o seu estágio literário no regionalismo – ele com as Cenas da Vida Amazônica – eu com Pussanga, Matupá e Histórias da Amazônia. E na evocação e pesquisa da nossa terra e da nossa gente nos sentimos felizes. Esta circunstância, aliás, além de outras, identifica, no tempo e no espaço, o primeiro e o último hóspede da Cadeira 18, que ambos souberam escutar uma daquelas cinco vozes que Tristão de Ataíde ouve, pelo coração e pela observação, nas cinco partes representativas da nossa terra.
A imaginação do homem, na Amazônia, é uma diátese geográfica. Para compreendê-la é essencial conhecer o ambiente em que ele nasceu. As suas qualidades e defeitos decorrem da própria geografia. O caráter do homem amazônico é a saturação das suas íntimas necessidades. Comprimido entre duas infinitas melancolias – a do rio e a da floresta –, ele se contrai sobre si mesmo, para fugir nas asas ligeiras da imaginação. Por todos os lados, a monotonia dos mesmos horizontes fechados resvalando no corte verde da linha indolente e rasa dos cenários. A terra se repete indefinidamente – no colorido das matas que enterraram as raízes nos pântanos coagulados; nas águas fundas de óleo negro e pesado; nos barrancos moles e desbeiçados, que o rio lambe, carrega e destrói incessantemente, na sua marcha viscosa e parda de cobra grande sem pressa. Sob a sombra das florestas aterradoras, onde dormem os duendes do terror cósmico, ele não vê o céu – e a luz das estrelas não se reflete na água triste dos igapós; os pés se atolam na lama podre, os olhos se apagam na densa escuridão da mataria sem termo...
Há uma fatalidade geográfica que conduz o homem da Amazônia – seja o índio, o caboclo ou o cearense – ao mistério dos mitos e à poesia das lendas. A natureza, ali, é que desencadeia a vocação lírica e mística, pelo terror, pela Beleza e pelo mistério. A magia telúrica do cenário excita imaginação, levando o homem à evasão da música e da Poesia. Daí também a importância que tem tido até hoje a paisagem em toda a literatura regional da Amazônia. Na literatura amazônica, desde Euclides e Alberto Rangel, até Alfredo Ladislau e Raimundo Moraes, a paisagem foi sempre o personagem central. Mesmo porque a terra, na sua panfagia, devora e absorve tudo. O sortilégio cósmico da Natureza, o feitiço misterioso da floresta fascinam e assombram, atraem e repelem, ao mesmo tempo, o homem intruso que se aproxima encantado mas intranqüilo... Como o rio e a sua história frase euclidiana, tudo ali é desordenado e incompleto. Nada, por isso, convida à permanência, à fixação e a estabilidade. O povoador nordestino, por esse motivo, além de outro, tem sido até hoje na Amazônia um marginal. Não se fixa. Não se detém. Não se adapta. Não se identifica. Não chega em geral a aceitar e compreender a terra. É sempre instável, provisório, interino, sem residência permanente. Entre o homem e a terra o que há ali, como observa o autor de O Ciclo do Ouro Negro, é nada mais do que um pacto de interesse. Só o caboclo – dono da terra – sente e ama a melancólica beleza da Mesopotâmia. Por isso, só ele ali permanece, fatalista e resignado, no abandono e na solidão das matas sem fim, dos rios sem fundo, das distâncias sem termo. Mas quem luta com a terra e procura domá-la pela violência, para desvirginá-la e fecundá-la, é o desbravador nordestino, que com a audácia das suas mãos aventurosas construiu a epopéia da borracha... O Sr. Andrade Queiroz, aliás, fixando o duelo dramático que ali se travou entre o homem e a terra, encarou o problema de um ângulo novo e singular.
Que fez o homem na Amazônia? Invadiu-a brutalmente, carregando às pressas o que lhe brilhou aos olhos como um valor venal e se pôs de largo, quando não o devoraram os dragões, guardas dos tesouros, em vez de ficar para produzir, para repor pelo trabalho o que a cobiça demolidora levou, sem deixar a semente que renova. E a terra parece ter consciência dessa injustiça, e paga com o mal o mal que recebe. A rapidez com que a natureza amazônica apaga os vestígios da passagem do homem parece movida pelo ódio, ódio que dá impetuosidades incríveis à seiva para fazer crescer a floresta aos arrancos, entupindo as clareiras que o machado abriu, como a esconder cicatrizes vergonhosas.
É a justiça da terra. É o ódio com que a terra paga o desamor do homem... Contudo, é lícito não subestimar o homem que enfrenta e procura domar aquele solo agressivo e triste, cuja paisagem, empapada de água, abafada de sombra traiçoeira e aterradora, é um permanente convite ao intruso para que se retire, para que não perturbe a sua solidão telúrica... Entretanto, o intruso, com a obstinação do amante infeliz mas apaixonado, embora maltratando-a, malferindo-a e abandonando-a, não a esquece, não a apaga da memória nem da saudade... Para bem ver e compreender o drama da Amazônia devemos aceitar o enternecido conselho de Nuno Vieira: é preciso descer ao chão e escutar com amor os corações subterrâneos... E isso foi o que fizeram – nem tenham dúvida – todos os regionalistas – de Veríssimo a Abguar Bastos e Dalcídio Jurandir – que fixaram com tanto amor o drama da terra e do homem da planície, em geral sem esconder a mágoa que lhes causa o abandono em que vêem a Mesopotâmia, mas tomados de um orgulho um tanto ingênuo que os leva a aceitar com alegria a frase famosa com que Raul Bopp parodiou Heródoto, ao afirmar, com ênfase, que o Brasil é uma dádiva do Rio Amazonas... A verdade, porém, em última análise, é que foram os escritores regionalistas – com as suas pesquisas de fala, costumes e usos, com as suas descrições da selva e do caboclo, com as suas evocações do panorama e da vida da planície – que, vencendo as dimensões ilimitadas das distâncias e as dificuldades desencorajadoras das lentas comunicações, incorporaram a Amazônia ao coração do Brasil, ensinando o nosso povo a amar, sentir e compreender aquele mundo telúrico de riquezas e espantos, de medos e belezas sem medida, que era até então para o resto do País uma simples abstração geográfica. Foi a Literatura regional que, arrancando a Amazônia do esquecimento e do silêncio, descobriu-a, restituindo-a ao Brasil. Essa a contribuição do regionalismo ao milagre da unidade brasileira.
Imagem do poeta
Estou chegando à idade – melancólica verificação! – em que já se tem necessidade de escrever memórias. As recordações flutuam, vez por outra, na água mansa da saudade – e nos comovem. Cada lembrança – uma vaga paisagem da nossa ilha perdida – é um pedaço da nossa alma, é um fragmento pulsátil do nosso coração. Há certas memórias, como observava o velho Machado de Assis, que são como pedaços da gente, em que não podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades. São dessa categoria estas minhas lembranças.
Permiti, pois, que recompondo alguns trechos desse roteiro esquecido, eu vos narre uma reminiscência pessoal: a minha recordação de Pereira da Silva. Foi aí assim pela altura de 1920 – quando o espírito de luta, o gosto da aventura e a ambição de liberdade me trouxeram da Província para a Metrópole – que conheci, na Livraria Garnier, o poeta Pereira da Silva, de quem me aproximou cordialmente a mão amiga do Sr. Jayme Adour da Câmara. A impressão que me deu foi, como a que de Augusto dos Anjos teve o Sr. Orris Soares, a de um pássaro molhado – “o tipo excêntrico do pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva”: murcho, ossudo, desengonçado e triste. Assim era Pereira da Silva. Privei, mais tarde, com ele bem de perto, Primeiro, na Central do Brasil, onde ambos trabalhamos. Depois, na Livraria Leite Ribeiro, cuja revista, O Mundo Literário, ele dirigia. E, por fim, na grande casa ilustre e generosa de Luís Carlos, em São Cristóvão, ao lado da Quinta da Boa Vista, que freqüentamos juntos, completamente esquecidos das distâncias hierárquicas e das diferenças de idade, porque a bondade e a inteligência do poeta de Astros e Abismos nivelavam numa fraterna simpatia todos aqueles que amavam a literatura... Pereira da Silva já havia publicado seus três primeiros livros – Vae Soli, Solitudes e Beatitudes – e construíra, nos nossos círculos literários e jornalísticos, um prestígio sólido e extenso. Durante todo esse tempo, malgrado nossos encontros freqüentes, nunca surpreendi no poeta um instante fugidio sequer de efusão e euforia. Não que fosse calado e arredio. Ao contrário, posto modesto e tímido, gostava de conversar, tinha a prosa fluente e viva. Mas não sabia o que era abrir a boca para sorrir. Como o Garcia de Machado de Assis, “por trás daquela impassibilidade aparente ou contraída”, poder-se-iam adivinhar “as ruínas de um coração desenganado”. Bom e puro corno um santo, Pereira da Silva vivia vida ascética. Tal como de Euclides disse o autor de Região e Tradição. Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana... Vida de santidade: humilde, apagada e triste. Sem nenhuma das boas alegrias tipicamente brasileiras. O sentimento de inferioridade física, que o dominava, energia do seu espírito, como acontecera com aquele outro poeta paraibano da sua mesma linhagem espiritual, segundo a aguda observação do Sr. A. L. Nobre de Melo, sob a forma de renúncia budística às materialidades terrenas. Não soube nunca o que fosse alegria da carne. Desprezava-a com asco e tristeza. O mundo dos sentidos era para ele inexistente:
Estou na inanição dessas almas de luto,
Cujo fundo de dor é tanto que os sentidos
Não são mais do que sons vagos, indefinidos,
Que procuro escutar, mas que tão mal escuto.
E comprazia-se naquela autoflagelação espiritual, naquela ruminação masoquista do próprio infortúnio, que se encontra, em geral, nas subcamadas mais fundas de todos os místicos e ascetas... A tristeza teve para ele sentido evidentemente místico – foi o prolongamento subconsciente da imagem materna que ele, um dia, na infância, viu partir nos braços do padrasto, e fixou então, abandonado e só, na memória dos oito anos, e que o acompanhou, melancólica, torturante e fiel, pela vida fora...
Vida, tristeza e morte de Pereira da Silva
Filho de Manuel Joaquim da Silva e Maria Ercilina da Silva, Antônio Joaquim Pereira da Silva nasceu a 12 de novembro de 1876, em Araruna, no Estado da Paraíba. O vilório sertanejo em que o poeta viu a luz, agacha-se, pitoresco e tranqüilo, nos últimos contrafortes da Borborema, quase nas fronteiras do Rio Grande do Norte, perto do município de Nova Cruz, onde, ainda menino, me aconteceu por sinal a primeira aventura literária, com a fundação de um semanário inquieto e atrevido – O Independente, o único que até hoje teve aquela cidade e que marca, com a sua vida efêmera de seis meses, a inauguração da minha pobre carreira de jornalista... Tive assim a sorte de conhecer a zona do Nordeste onde nasceu o poeta, e é com indissimulável emoção que recomponho a fugitiva poesia daquele instante da minha vida. Araruna tem, sob a claridade polida do sol do Nordeste, aquele “velho ar de franqueza e de bondade” das cidades do interior do Brasil, cujas casas humildes, de janelas baixas e portas largas, parecem um permanente convite da hospitalidade brasileira:
– Apeie e entre. Venha tomar um cafezinho!
Ele mesmo a descreveu a Adelmar Tavares, como pequena, baixa, atarracada, os beirais sobre a calçada, uma meia porta e uma janela alta, de onde o poeta gostava de ver a água da chuva pingar, melancólica, nos lajedos da rua... Pereira, embora não fosse amante de paisagens, foi sensível à beleza humilde da sua terra, e pintou-a – com que emoção! – em “A loa da vagabundo”, em que pôs muito da sua vida e do seu coração.
A Loa da Vagabunda
Lembra-me bem da minha nobre terra.
Tudo era verde. Havia sobre a serra
Eternamente incensos de nevoeiro.
E vales, montes, o ambiente inteiro,
Era só flores, um montão de flores
Em que eu fitava os olhos cismadores,
Feliz de ver-me num torrão fecundo,
Belo e floral como o jardim do mundo.
Lembra-me bem daquela natureza:
Céus imortais em tons de azul turquesa,
Campos ridentes, prônubos pombais,
Gados às soltas, cheiro de currais.
E, às horas fortes dos sertões, a sesta,
O conforto sombrio da floresta,
Alfombras mais suaves que o veludo,
O coração e o pensamento em tudo.
Eu era um Ser, eu tinha amor à Vida,
Tal qual se fora uma árvore florida.
Filha da Terra, era da terra amada:
Amava e ouvia tudo: uma levada
Que ia a correr tumultuosamente
Para dar água pura a toda gente,
Um ninho balouçando na ramagem,
O desmaio da luz sobre a paisagem...
Sim! era um Ser, e Ser dos mais felizes.
Prendiam-me ao país fundas raízes,
Ouvira ali minha primeira missa,
E, à luz da mesma lâmpada mortiça,
Naquela igreja branca e pequenina,
A teus pés a minha alma de menina
Quanta vez – Mãe Santíssima das Dores!
Caiu de joelho entre montões de flores!
Agora mesmo alongo o atento ouvido
E ouço um rumor: o mundo comovido
Dos pássaros votivos da manhã,
E vejo e sinto a hilaridade sã
Com que, no gozo inédito de voar,
Tontos do azul inebriante do ar,
Cruzavam seus alígeros volteios,
Simultâneos nos vôos e nos gorjeios!
Ah! minhas horas íntimas, caladas,
Ermando ao largo e ao longo das estradas!
Arvoredos sombrios dos caminhos,
Romantismos de pássaros e ninhos,
A primavera reflorindo os montes,
As verduras idílicas das fontes,
A casa branca, a festa das abelhas
E as andorinhas no desvão das telhas!
E hoje – que sou? – a eterna forasteira,
A errante, a Vagabunda, a aventureira
De um lar deixado pelo mundo incerto...
Sou uma voz perdida no deserto;
A “desplantada” que ninguém compreende,
Fantasma, sombra, espírito, duende,
A Alma da Aldeia, expiando as culpas suas,
No tumulto das praças e das ruas.
Mas guardarei a minha dor obscura.
Nenhum de vós terá minha ternura,
Nenhum de vós, homens que estais passando.
E só, dentro de mim, de quando em quando
– Árvore morta das evocações –
Eu viverei minhas recordações,
A minha aldeia, o meu torrão fecundo,
Que hoje é que eu sei: em o jardim do Mundo!
Por uma fatalidade que não deve ser esquecida, Pereira da Silva nasceu às vésperas do ano da grande seca: 77. Veio ao mundo, pois, sob o signo do sofrimento, da pobreza e da melancolia. Haverá acaso na face da terra espetáculo mais pungente de tristeza, de miséria e de dor do que uma seca no sertão? Pois foi nesse quadro de infinita desolação, em que os mandacarus e os xiquexiques abrem os braços solitários para os céus como a pedir socorro, e em que tudo na amplidão desolada das serras e das caatingas é abandono, desespero e morte, que Pereira da Silva surgiu para a vida, num lar pobre e anônimo. O pai era um carpinteiro que amava o ofício, e o exercia com a paixão e o orgulho de quem realizasse uma obra de arte, ocupando-se preferentemente na construção de violas – o instrumento mais caro ao lirismo dos cantadores sertanejos. Era o próprio poeta quem contava:
– Meu pai era para as suas violas, por todo aquele mundo sertanejo, o que era Stradivarius para os seus violinos. Eu me ficava horas inteiras a olhar e admirar a sua paciência na manufatura daquelas longas e leves caixas que iriam guardar os suspiros e as tristezas de amor dos poetas do meu sertão! Quando meu pai morreu, recolhi como herança, e conservei por muito tempo, uma cruz de madeira na qual ele trabalhou até às vésperas. (Profecia, talvez, de meu Destino). Eu deveria chamar-me Pereira da Cruz... Hesitei em assinar-me assim. Mas, por ele mesmo, fiquei Pereira da Silva.
Infância
Triste e franzino, o caboclo Antonio Joaquim teve uma infância sem alegrias e sem brinquedos. Não gostava de peraltagens, nem amava os folguedos turbulentos dos garotos da sua idade, preferindo passear sozinho entre os arvoredos ou sentar-se à sombra das oiticicas e juazeiros para cismar, os olhos longe, perdidos no horizonte, e o pensamento mais longe ainda... Os outros garotos, irritados com a sua atitude esquiva, chamavam-no de “sombra”, de “lua”, cobrindo-o de remoques e maldades. Mas, no fundo, lhe tinham uma insopitada inveja, porque ele era o coroinha da Capela da Conceição, vestia batina, acendia as velas do altar, balançava o turíbulo, ajudava a missa, cantava no coro, tocava o sino da igreja... Oh! que invejável destino, em Araruna, o daquele menino magricela e triste! Ele recorda essa “Idade de Ouro” com a mais sentida nostalgia:
A Idade de Ouro
A minha infância! Tenho-a na memória.
Embora os transes trágicos da vida
Levassem meu destino para a glória
Ou para a morte menos percebida,
Essa lembrança luminosa e cara
Jamais de minha mente se apagara.
Ela foi triste, ela foi desolada,
Não teve a graça própria à idade inquieta,
Essa primeira luz da madrugada,
Prenunciadora do natal de um poeta;
Mas, ainda assim, foi minha idade de ouro,
Meu primeiro, meu único tesouro.
Filho do Norte, a natureza ardente
Amamentou de luz e de ar meus dias
Livres e soltos nesse verde ambiente
De florestas fecundas e sombrias!
Não me ficou somente na retina,
Mas n’alma, essa paisagem que fascina.
Ficaram-me indeléveis nos ouvidos
O vozeio das festas e das feiras,
A hilaridade de cristais partidos
Dos sinos nas matinas domingueiras,
O tropel sertanejo dos comboios,
A prosódia das águas dos arroios.
As essências mais árduas e custosas
Não conseguiriam dar-me o gozo exato
Do cheiro virginal daquelas rosas,
Do olorante verdor daquele mato...
Quem já gozou emanações iguais
Às desses campos com seus roseirais?
São meu tesouro oculto essas lembranças
Que andam comigo sem que ninguém veja.
Que saudades de um par de rolas mansas
Que pousavam na própria cruz da igreja
E lá ficavam, mudas e serenas,
Em doce idílio debicando as penas!
Como esse par de pombos os velhinhos
Vinham sentar à porta, cismadores,
Enquanto, entre os silvedos dos caminhos
Aos rapazes as moças davam flores
E nós, meninos, íamos em bando,
Ver nos currais o gado vir chegando!
Pela tarde bucólica, era lindo
Todo o gado apriscando pressuroso
Para o repouso e como que sentindo
E antegozando, farto, esse repouso!
Todo o redil ficava alvorotado
E era pequeno para tanto gado.
São meu tesouro essas saudades puras
De minha vida fértil e florida
Com seus campos cobertos de verduras,
Roças fartas de frutos e de vida,
Simpleza nos labores e folgares,
Costumes de bondades singulares.
Quanta firmeza nesses homens rudes
E votados, nos dias de perigo
A confortar-nos nas vicissitudes
E, conosco, a enfrentar nosso inimigo,
Inspirando-nos fé, dando-nos crença
Em Deus que pune os maus e os bons recompensa!
Tenho nos olhos d’alma aqueles montes
Que o Poente inflama de clarões sombrios;
Ouço mais viva a voz daquelas fontes,
Mais surdos os rojões daqueles rios,
E, muita vez, à noite, horas inteiras,
Escuto, ao longe o eco das cachoeiras.
.......................................................................
Oh! minha infância! Tenho-a na memória.
Embora os transes trágicos da vida
Levassem meu destino para a glória
Ou para a morte menos percebida,
Nunca olvidara a minha Idade de Ouro
Meu primeiro, meu único tesouro.
Repartia suas horas de criança entre as tarefas da sacristia e a contemplação da oficina paterna. Quando voltava da igreja, Antonio Joaquim, ao lado do pai, que fazia violas, preparava as lições para o Tio Sinésio, que ele havia de evocar mais tarde – tantos anos passados! – num poema comovido:
Adeus, tio Sinésio, nobre Amigo.
Você leva consigo
Uma grande afeição,
A do sobrinho que hoje lê,
Graças ao puro estímulo cristão
Com que seu gênio bom lhe pôs na mão
A carta de A B C.
Isto se deu num velho vilarejo
Do Brasil sertanejo,
Remoto, já passado.
Quando toda família, ingenuamente,
Considerava o seu melhor cuidado
Possuir, pelo menos, um parente
Formado...
Você me fez por isso, todo bem:
fez-me ler e contar,
Esperando que um dia eu fosse alguém
De cuja inteligência luminar
Você pudesse, ao justo, se orgulhar
Como ninguém.
Nada fui, nada sou; mas, ainda assim,
Como você gozava à saciedade
Tudo quanto, por mera benignidade,
A crítica dissesse sobre mim!
Agora que, segundo as leis fatais,
Cede o seu corpo octogenário à morte
Penso, meu tio, que ele foi tão forte
Porque o seu coração foi bom demais.
Adeus, meu grande amigo!
Você leva consigo
A maior afeição:
– A do sobrinho que hoje lê,
Graças ao puro estímulo cristão
Com que seu gênio bom lhe pôs na mão
A carta de A B C.
Depois da morte do pai – o primeiro golpe que lhe foi direto ao coração – o menino Antônio Joaquim mudou-se com a mãe para a casa do avô, onde passaram a viver. Mas D. Maria Ercilina, não suportando a solidão da viuvez, casa-se novamente. E certa tarde, após a cerimônia do casamento, a mãe beijou-o ternamente, e partiu com o padrasto, a cavalo, para a viagem de núpcias. Pereira da Silva assistiu, calado e triste, à cena da partida dos noivos... Os dois cavalos de sela arrancaram a galope pela estrada – e o menino Antônio Joaquim, vendo-lhes os vultos festivos apagar-se a pouco e pouco na poeira e na distância, vai silenciosamente sentar-se embaixo de uma velha árvore de sombra amiga e tranqüila, no oitão da casa. Lá longe o dorso azul da Borborema ondula no horizonte verde, e a paisagem humilde, onde o chocalho e o mugido do gado manso põem sonoridades melancólicas de despedidas, é doce e crepuscular como uma saudade... Quando a sombra querida da mãe desaparece, por fim, na curva do caminho, o menino Antônio Joaquim se sente de súbito tão só, tão triste e tão desgraçado, que desata num pranto sem consolo, e não tem coragem de voltar para casa. Ali ficou, soluçando, numa dor sem remédio, até que o manto constelado da noite, cobrindo-lhe a solidão, o desespero e a melancolia, veio pacificar-lhe o coração, e o medo da escuridão o reconduziu à casa do avô. Ele explicava, depois de homem, ao Sr. José Vieira: Começou aí toda a tristeza da minha vida!
A frescura, a alacridade das primeiras impressões – o panorama de Araruna, a Igreja da Conceição, as lembranças do Pai – se lhe diluíram na memória e não ressurgem na sua obra, tão sóbria e triste, senão de raro em raro. O que ficou indelével, para marcá-la, foi a recordação da partida materna, cuja imagem, em toda a vida, ele procura incessantemente capturar e fixar... Foi o seu primeiro infortúnio – e o de repercussão mais intensa e durável. Do passado só lhe interessava, como sucedia a Proust, a última reserva, a mais profunda, aquela que, quando todas as lágrimas pareciam esgotadas, era capaz ainda de fazê-lo chorar...
Juventude
Aí por volta dos seus 18 anos, em 1895, acontece a Pereira da Silva a experiência da carreira militar: matricula-se na velha escola ilustre da Praia Vermelha, onde nove anos antes entrara Euclides da Cunha – aquela escola que o capitão Umberto Peregrino recordou há pouco com tão envolvente poder de sugestão. Na escola, onde teve destino paralelo ao de Euclides, viveu, como ele, decerto solitário e inadaptado, sem freqüentar o “Beco do lá vem um”, nem os alegres “caroços” dos alunos... Mete-se numa conspiração de cadetes, toma partido por Floriano contra Prudente, e em 1897, desligado da escola, é recolhido preso ao Quartel General e deste transferido para o 13.o de Cavalaria, no Paraná. A mãe de Pereira da Silva é tomada de pânico: – Minha Nossa Senhora da Conceição, que vai ser do Antonico! O n.o 13... o frio do Paraná... e aqueles cavalos brabos do Exército!
Mas felizmente – mercê de Deus! nada acontece ao ex-cadete Antônio Joaquim, que se aclimou muito bem em Curitiba, onde conheceu Dario Veloso, Silveira Neto. Emiliano Perneta, os líderes famosos do “grupo paranaense”. Data dessa época o seu primeiro livro: Vae Soli, publicado em Curitiba (1903), quando ele já havia completado 27 anos de idade. Trai, nítida, a influência do modelo simbolista do Paraná, com o qual Pereira da Silva se identificara fraternalmente, e é dedicada a Dário Veloso.
Num belo e comovido poema, Pereira da Silva, evocando o grande amigo, em 1921 – 24 anos depois! – recorda esse velho tempo:
Meu caro Mestre e amigo: hoje, não sei por quê,
Ressentido de mim – lembrei-me de você.
Lembrei-me de Você – nobre poeta humanista,
Cultor da Alma e do Bem como um divino artista.
Em tempos que lá vão, era quase um menino
Já de olhar cismador e físico franzino,
Quando um dia fatal as fúrias do meu Fado
Me arrojaram aqui para o Sul, exilado.
Só Deus, só minha mãe sabiam, meu amigo,
A imensa decepção que ia também comigo,
Tendo visto abater, de um mesmo golpe rude,
Todo o virgem floral da minha Juventude.
Foi assim que parti, vivo de mocidade,
Mas cheio de pesar, do medo, da ansiedade
De quem, tímido e só, pela primeira vez,
Vê que o sopro do azar tudo que fez desfez.
Ora, um dia, chegando anônimo e sombrio
À Terra a que Você dá tanta luz, Dario,
Com que aberto sorriso e inédita afeição
Você me abriu seu Lar com sua própria mão!
...............................................................
Ah! que longe lá vão, tais entretenimentos!
Que de outras provações e horas de tédio cruentos
Me afrontaram depois, me enervaram depois
Desses dias tão bons, tão gratos a nós dois!
O pulso mau do azar que sempre nos conduz
Como a cegos de guia em vão pedindo luz
Atirou-me outra vez à torpe realidade
De que tanto se orgulha a claque da Cidade.
Você lá se deixou na doce lida rude
De ensinar, como um grego, à flor da Juventude;
Mas, dando a tal missão, sempre tão mal servida,
Tão singular fervor como não vi na vida.
...Ah! Pudesse eu dizer, Dário, neste instante,
Em que vejo Você mais belo e mais distante
(Por que? Porque talvez minh’alma está mais pura).
Sim! Pudesse eu dizer, aqui, toda a ternura,
Todo o insólito ardor desta afeição discreta
Que consagra ao seu nome o mais obscuro poeta!
Depois de dar baixa do Exército, volta Pereira do Paraná e fixa-se no Rio. Matricula-se na Faculdade de Direito em companhia de um velho e fraterno colega da Escola Militar, Sarandi Raposo, que, como ele, era inimigo pessoal da Matemática. Segundo narrou ao Sr. Francisco Leite o próprio Pereira da Silva, o companheiro quase enlouquecia quando tinha que estudar Álgebra, não podendo admitir que letras fossem equivalentes a algarismos... E por isso desistira da carreira das armas. Fizeram juntos o curso de Direito. Ao mesmo tempo em que estudavam, faziam composições em prosa e verso. Freqüentavam jornais, projetavam planos de vida. Foi logo após o retorno do Paraná que Pereira conheceu no Rio seus dias mais ásperos de luta, suas horas mais amargas de solidão. Foi a época em que ele viveu dolorosamente o seu “drama do estudante Batista”: a luta do provinciano anônimo por um lugar ao sol, para vencer as suas origens modestas pela realização de um secreto ideal de glória... Que obscuro heroísmo o dessa luta, a luta, como dizia Machado de Assis, daqueles que desde o berço foram condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Estudante paupérrimo, perdido sozinho no meio da cidade imensa, ele travou o corpo a corpo com a fome. Viveu a “situação horrível” do herói de Ribeiro Couto. Conheço – e como a conheço! – a luta do rapaz nortista que chega um dia ao Rio, só e pobre, para fazer carreira literária, para construir um nome. Sem padrinhos, sem família, sem fortuna e sem amigos, ele se sente na mais completa solidão, no abandono mais desesperado. Só lhe resta lutar e sofrer, bracejar sem pausa para não submergir, como o náufrago que luta com as ondas sem ter diante dos olhos senão a ilusão remota de uma luz que o fascina, lá longe, na praia talvez inatingível, mas que o atrai e encoraja: a luz de um vago ideal... Pereira da Silva viveu esse pungente drama, e sabe Deus como ele conseguiu realizar a sua obra literária, construir o seu nome, atingir o seu sonho de escritor e poeta. Mas o caminho que ele percorreu para chegar até aí foi declivoso e triste. Temperamento retráctil, ele não tinha grandes expansões, nem muitos momentos de comunicação humana. Os amigos eram poucos, e as alegrias, inexistentes. Contudo, Pereira da Silva marchava corajosamente da obscuridade da sua condição de origem para a glória do seu destino; sem pressa, mas sem hesitação.
Maturidade
Foi por intermédio de Sarandi que Pereira da Silva veio a conhecer Rocha Pombo, também paranaense, e com uma de cujas filhas casaria mais tarde. E foi, por sinal, com recomendação do sogro que Pereira da Silva, recém-formado em Direito, regressou ao Paraná, indo ocupar o cargo de promotor público na Comarca de São José dos Pinhais, perto de Curitiba. Ali ficou algum tempo, sendo depois removido para a Comarca da Palmeira. A Palmeira, nessa época, era um ermo. Pereira recebia, seguidamente, do sogro, livros e revistas, que alimentavam a curiosidade do seu espírito. Foro pacato, cidade morta, Pereira aproveitou as horas de ócio que lhe sobravam e adquiriu um compêndio de alemão-sem-mestre. Leu-o e releu-o sem cessar, dia e noite. Em pouco tempo penetrou os segredos do idioma de Goethe. E, para exercitar-se, passou a enviar, anonimamente, para o jornal Der Beobachter, que se publicava semanalmente, em Curitiba, algumas correspondências. Viu, depois, que o jornal teuto-brasileiro lhe estava publicando as notas remetidas e adquiriu confiança no alemão que aprendera... Na cidade de Palmeira, em 1908, ou 1910, o Sr. Francisco Leite encontrou-o algo preocupado, pois mandara os originais de um livro de poesias para ser prefaciado por Euclides da Cunha e o autor de Os Sertões fora assassinado, antes de devolvê-los. Rocha Pombo estava empenhando esforços para ver se conseguia localizar e reaver o livro. Mas, que livro terá sido esse? O Solitudes ou algum outro? Dele os amigos de Pereira não tiveram mais notícia. Preterido pela política estadual, Pereira exonerou-se da promotoria da Palmeira, retornando ao Rio, onde se fez jornalista para viver – como se aquilo fosse viver! Realmente, a vida de imprensa, no Rio, por aquela época, era talvez alegre e espiritual, mas era principalmente uma vida de miséria. O “rapaz de jornal”, ganhando ordenados ridículos, e recebendo essa triste remuneração em vales impontuais e dificílimos, vivia num regime permanente de subfome crônica, alimentando-se de literatura e “média” com pão com manteiga... Em compensação, os “rapazes de jornal”, como Pereira da Silva, que eram “provincianos, românticos e um pouco espantados”, tinham no meio dessa dura miséria compensações literárias do convívio das rodas boêmias, que as grandes figuras da época freqüentavam com fraterna assiduidade... Pereira da Silva, ainda que esquivo e taciturno, gostava dessas rodas – e tinha meia dúzia de amigos constantes e fidelíssimos: Félix Pacheco, Castro Meneses, Gonçalo Jácome, Carlos D. Fernandes, Saturnino Meirelles. Das longas noites de plantão, nas redações trepidantes e boêmias, saía Pereira exausto mas contente, embora nem sempre bem alimentado... E após as conversas literárias dos cafés, caminhava ele horas perdidas, no silêncio das velhas noites cariocas, compondo sob a complacência das estrelas os seus belos e melancólicos poemas, sombrios e desenganados, mas sinceros como gemidos...
Fazendo vida de imprensa desde estudante, Pereira da Silva teve postos mais ou menos obscuros em Cidade do Rio, Gazeta de Notícias, A Época e no Jornal do Commercio, onde, como repórter de polícia, substituiu Félix Pacheco, por cuja mão fraterna entrou para o grande órgão. Entretanto, mais tarde, em A Pátria, para cuja redação João do Rio o convocou, teve o alto posto de redator-chefe. Além de editoriais e reportagens, Pereira da Silva fez, em muitos desses jornais, a crítica literária da sua geração, estudando as obras dos contemporâneos. Em companhia de Saturnino Meireles, Félix Pacheco, Gonçalo Jácome, Paulo Silva Araújo, Carlos Dias Fernandes e Álvaro Sá Castro Meneses, participou do movimento vanguardeiro que fundou a Rosa Cruz. Mais tarde – bem mais tarde – de 1922 a 1924, dirige, com os Srs. Téo Filho e Agripino Grieco, a revista da Livraria Leite Ribeiro, O Mundo Literário, que gozou de certo prestígio e teve certa influência no Rio, naquele momento. Já então, Deus louvado, Pereira da Silva, que contava bons amigos, e era um poeta de renome nacional, repetindo o destino de Cruz e Souza, lançara âncoras finalmente numa burocracia medíocre, mas tranqüila, na Central do Brasil, onde a amizade e a admiração de Luís Carlos o amparavam com seu prestígio oficial, o que lhe permitia viver com mais conforto, embora com modéstia e discrição. Além disso, conquistou ele até um lugar de professor de Direito em Niterói, embora nunca tenha exercido efetivamente o magistério. O caminho que Pereira da Silva percorreu foi lento e difícil. Mas foi, como sempre sucede no Brasil, o roteiro da inteligência, do estudo, do aperfeiçoamento cultural.
Como agudamente observou o Sr. Nelson Werneck Sodré, a circulação social, entre nós, se faz através das profissões intelectuais. São numerosos, no Brasil, os elementos da plebe que ascendem às mais altas situações sociais, através do clero, das Letras, da Imprensa, do Exército, da Política. As profissões liberais sempre foram caminho natural para a conquista de posições de destaque na vida civil do País, mesmo para aqueles que têm origem mais humilde e obscura. Machado de Assis foi um exemplo. Como, muitos anos mais tarde, veio a ser outro exemplo Pereira da Silva, modesto filho de um marceneiro do sertão de Araruna, que, primeiro, através da Escola Militar e, depois, através da Faculdade de Direito, do emprego público e da imprensa, do estudo e da Literatura, ascendeu da mais obscura origem à mais elevada situação cultural no País, coroando sua carreira com a consagradora conquista de uma Cadeira nesta Academia. Libertando-se da humildade pela inteligência, Pereira da Silva fez, porém, o seu itinerário – que longo e áspero itinerário! – da obscuridade à glória, com uma tranqüila dignidade, com certo orgulho mesmo, e vingava-se da burguesia, a cujos quadros afinal ascendeu, verberando, implacável, sua luxúria, sua vaidade, seus vícios, a sensualidade e a fatuidade das grandes cidades, temas de que estão repletos todos os seus livros de poesias. Era essa, de resto, a expressão natural do seu inconformismo – manso e melancólico. Porque ele mesmo confessava ter preferido sempre “a resignação estóica à rebeldia estéril”.
Mas nem o serviço público, nem a atuação social, nem mesmo a atividade de imprensa constituíram realmente a motivação principal da vida do seu espírito. O seu grande, o seu verdadeiro centro de interesse era um só: a Poesia.
É meu tormento. Chamam-lhe poesia,
Arte do verso. Chamo-lhe madeiro,
A Cruz da minha noite e do meu dia.
Cruz em que verto o sangue verdadeiro
E em que minh’alma em transes agonia,
E o coração se crucifica inteiro...
E ele soube ser fiel ao seu destino. O drama deste poeta foi o drama da solidão e da dúvida. Porque ele só possuía na vida três coisas: a mãe, o filho e os livros:
...humilde lar ilustre
De minha mãe, meus livros e meu filho.
Ele foi assim, na frase de Luís Carlos, “um poço noturno; mas um poço cheio de estrelas”. A sua experiência foram a doença, a humildade, o abandono, a solidão e a tristeza...
Sereno fim de jornada
Mas, aí pela altura de 1927, ele conhece, nos acasos da vizinhança, na rua Paulo de Frontin, onde morava, uma criatura espiritual e boa, D. Antonieta. Chegando-lhe ao coração pelo caminho da inteligência, primeiro ama e conhece a obra, para depois conhecer e amar o poeta. Casou-se com ela Pereira da Silva em 1930. No entanto, Pereira da Silva duvidava da própria felicidade, que o amor lhe concedera, tranqüila e mansa, no fim da vida, justamente na hora em que esta Academia o convocara para seu ilustre convívio. Ele costumava dizer à esposa, num tom de resignada melancolia:
– Você gosta é dos meus livros e não de mim...
Entretanto, a verdade é que os últimos anos de sua vida foram calmos e felizes. Ele tinha agora para compor-lhe a serena doçura dos derradeiros dias, no “lar ilustre da mãe, do filho e dos livros”, além do carinho materno e da companhia filial, a ternura da esposa e o sorriso álacre de um netinho. Mas era tão seco e fechado, que, apesar de adorá-lo, nunca beijou o neto... Vivia, porém, no recolhimento de uma grande e pura humildade interior. O diagrama da marcha do seu espírito é horizontal – e segue, invariavelmente, sobre a abscissa do Tempo, nas ordenadas da Melancolia. Ele foi em toda a sua vida, pois, mesmo nos instantes de tranqüila felicidade, como Le Passereau, de Leopardi: o pássaro solitário e silencioso, que permanecia isolado na alta torre deserta, indiferente à Primavera que cantava lá fora na copa festiva das árvores em flor... A doença, que surda e insidiosamente lhe minava o organismo, não obstante suas freqüentes estações de cura em Pati, Rodeio e Vassouras, acabou pondo-lhe termo à vida, numa casa de saúde da Gávea, no grave silêncio da verde montanha sonora de pássaros e águas correntes, onde o Anjo da Melancolia lhe fechou docemente as pálpebras cansadas, recolhendo-o ao regaço das eternas sombras e do silêncio definitivo, que concede aos mortais aquele repouso interminável que tem o nome de mistério...
Temperamento do poeta
Há homens múltiplos, complexos; de fisionomia poliédrica, cujo espírito e cuja vida comportam infinitas variações. Pereira da Silva não foi desses. Era uniforme e igual. Sempre o mesmo. Imutável e constante, de uma constância e imutabilidade que eram fronteiriças da monotonia, Tudo, afinal de contas, efeito da fidelidade da alma. E isso resultou, em última análise, numa virtude literária: a unidade da sua obra, o que de resto levou os críticos a acoimarem-no de monocórdio. Não há dúvida que ele tocou sempre nos mesmos ritmos. Mas isto, em verdade, sendo uma contingência psíco1ógica, porque efeito de certa tendência iterativa, resultou em uma sólida homogeneidade literária. Seu temperamento é doce e recolhido. Não se dá bem nos climas de claridade e de rumor. Refoge a todas as formas de pompa, ruído e ostentação. Natureza votada à solidão e à melancolia, Pereira da Silva conheceu e amou o prazer de pensar, que é ao mesmo tempo voluptuoso e melancólico. A Dor de Pereira da Silva era triste, e triste era a sua Verdade. Como nele era tudo o mais: o Amor, a Bondade, a Imaginação e a Sensibilidade. Conservando em toda a vida a nobre severidade da mesma atitude, ele tinha olhos apenas para ver aquela “parte noturna das coisas humanas”, de que falava Araripe Júnior. Era dotado da extraordinária sinceridade, da angústia metafísica e da angústia solitária que Cassou descobriu em Baudelaire.
Esquivo e tímido, Pereira da Silva foi na vida um hóspede cerimonioso. No convívio corrente dos homens, no amor, no trabalho, na própria glória, ele nunca se sentiu à vontade, era sempre hesitante, constrangido, um pouco encabulado talvez, como a pedir desculpas de estar presente... Só numa coisa se sentiu à vontade e, porventura, até feliz: na sua poesia. O Sr. Múcio Leão fixou com admirável propriedade essa observação: “Pereira da Silva teve um destino, um único e maravilhoso destino – o da Poesia. Nunca foi outra coisa, nunca ambicionou ser outra coisa, nunca pensou que pudesse ser outra coisa senão esta coisa simples, misteriosa e divina – um Poeta.”
Este solitário era daqueles que trazem a solidão consigo, dentro de si, no coração. E toda vez que tentou libertar-se dela – pelo amor, pelo casamento, pelo convívio dos homens – sentiu-se ainda mais desgraçado e triste, mais abandonado e só. Recebendo o Sr. Múcio Leão na Academia, Pereira da Silva confessava a impossibilidade de sair de si mesmo, isto é, a sua ostensiva introversão: “Minha vida é a vossa; vossa vida é a minha; viveis o que eu vivo. O destino é uno. Quando vos falo de mim, falo de vós. Como não o sentis?” E, entretanto, segundo narrou D. Antonieta Pereira da Silva, nos últimos tempos, ele tinha horror a ficar sozinho... Tendo vivido só toda a sua vida – mesmo quando se achava no meio das multidões – este grande solitário temia, no fim da existência, o abandono e a melancolia da solidão. O que não o impedia de continuar a cantar a doçura inefável da solidão... É preciso compreender e explicar essas contradições dos poetas. O poeta é, por definição, um ser cuja personalidade se fragmenta e dilui estranhamente – e nem sempre a sua vida exterior é coerente com a sua vida interior, embora o próprio Pereira da Silva negasse a existência da contradição entre a realidade objetiva e a subjetiva. A razão, na explicação desse fenômeno, estava decerto com Benjamin Cremieux, que há cerca de 20 anos, na Nouvelle Revue Française sustentava a tese, cara ao grande Proust, da dissolução da nossa personalidade. “A personalidade humana”, segundo Cremieux, “pulverizou-se; nosso eu, fracionado em tantos eus sucessivos quantos minutos vive, tenta em vão colar, unificar seus átomos esparsos.” “A essa dissolução do eu, corresponde, por curiosa contradição, um verdadeiro misticismo do eu.” Isso é tanto mais verdadeiro quando se trata de poetas. Porque os poetas são, por natureza, seres estranhos e difíceis. A criação poética é um estado de graça – fenômeno misterioso e sutil na sua maravilhosa complexidade, escapa muita vez à compreensão e à interpretação dos críticos. Porque a arte quase sempre antecipa e ultrapassa a lógica e a razão. A extensão do prazer e a profundidade do mistério que caracterizam o ato super-humano da criação artística transcendem os meios normais da interpretação crítica. Os críticos, como os psicólogos, não dispõem de padrões específicos para a medida dos valores artísticos, e os seus testes, em geral, embora pretendendo ser exatos e rígidos, falham na avaliação das forças imponderáveis que dirigem e presidem o ritmo da criação poética. Críticos, psicotécnicos e psicanalistas – todos aqueles que acaso se preocupam com a explicação desses altos fenômenos de ordem espiritual – propõem sempre, para essa equação de tantas incógnitas, soluções unilaterais, incompletas ou falsas. O homem a quem Scheler chamou de descobridor, porque inventa todos os dias a Beleza, libertando-se das subalternas contingências humanas pelo milagre da eternidade lírica da poesia, não pode ser explicado tampouco lateralmente, num ou noutro dos seus aspectos: tem que ser compreendido, avaliado e explicado, panoramicamente, na universalidade e grandeza de todos os seus dons. Da nossa incompreensão da dualidade psicológica dos poetas é que nascem certos equívocos. Georgette Leblane, por exemplo, apesar de inteligente e culta, nunca compreendeu o “mistério Maeterlinck”. Ela mesma confessa, no seu delicioso livro de recordações, essa irremediável incompreensão, o seu espanto diante do “monstro Maurice”, e a incompatibilidade da moça de claro espírito, alimentada de letras clássicas, com o simbolismo que era um estado de alma.
Há, de resto, um episódio que define essa desencantada incompreensão. Tendo de receber peja primeira vez em sua casa o grande poeta, ela começou por vestir uma toalete “melissandesca”, “de um ridículo harmonioso”, e transformou sua bela residência da Praça dos Mártires, em Bruxelas, num décor legitimamente maeterlinckeano que evocasse aquela teoria de sombras que era a obra de seu ídolo... Preparou para Maeterlinck uma sala especial: forrou as paredes de tule negro e ornamentos de prata, dispôs nos cantos vasos com incenso, para obter, com este ambiente lúgubre, um efeito místico e misterioso, bem adequado ao gosto do poeta Maeterlinck, porém, mal olhou da porta o grande salão negro, estacou espantado:
– Mas, que catafalco é este? Por nada deste mundo eu entrarei aí...
E voltou para a clara sala de entrada, vulgar e agradável, sem literatura, e instalou-se tranqüilamente numa vasta poltrona – a menos maeterlinkeana do mundo, e que Georgette Leblane não conseguira escamotear aos seus olhos... Depois explicou que tinha horror aos velhos móveis e aos lugares sombrios:
– Essas coisas são sujas e feias. Boas para museu, mas não para a gente viver nelas...
Ele amava as paredes brancas, as salas claras, tudo o que era nítido e reluzente... Penumbra e misticismo, só em poesia... Era exatamente o mesmo que sucedia talvez a Pereira da Silva nos últimos tempos – solidão e abandono, só em poesia... Na vida, ele, que sempre vivera só e triste, nos derradeiros anos, tinha horror à solidão... Uma imperiosa necessidade de calor afetivo, de convívio cordial e generoso lhe tomara conta do fatigado coração. E ele foi feliz porque teve para assistir-lhe os últimos anos da existência uma companheira amiga e compreensiva, que lia e amava os seus melancólicos poemas.
Simbolista
Um ensaio recente de Morgan (1944) veio mostrar-nos a importância considerável do Simbolismo, que no Brasil sempre foi tratado com sorrisos superiores de suficiência e desdém. A fonte inicial do Simbolismo foi sem dúvida o mais importante lírico do século XIX – pelo menos nas literaturas de línguas latinas – o velho e grande Baudelaire, essa encruzilhada surpreendente que segue, até hoje, em tantas direções, e que, depois de ter influído em Mallarmé, Rimbaud e Verlaine, vem influir no poeta mais significativo do nosso tempo que é Rainer Maria Rilke. “Uma das condições reveladoras do gênio é que o homem de gênio é uma encruzilhada” – lembra Tristão de Ataíde. De todos os lados podemos chegar até ele. E dele podemos partir em todas as direções. Foi exatamente o caso de Baudelaire. Coincidem, hoje, as melhores opiniões, no plano da interpretação histórica e da crítica, em considerar Les Fleurs du Mal como uma das fontes, a principal sem dúvida, do movimento poético moderno (Cassou). Da encruzilhada Baudelaire partem, incontestavelmente, três grandes caminhos: um, que vai dar a Mallarmé; outro, que vai ter a Rimbaud, e o terceiro, que se dirige a Valéry, Mas qual terá sido, em verdade, o papel primacial do Simbolismo? Reagindo contra o “colapso da sensibilidade”, que eram o Naturalismo e o Parnasianismo, os simbolistas vinham libertar a poesia de todos os elementos acessórios e estranhos, espiritualizando-a e purificando-a.
Terá sido Pereira da Silva, realmente, um simbolista? Entre a tentação de definir e o desejo de marcar fronteiras, os críticos se perdem freqüentes vezes em largos debates sobre o problema das “escolas literárias”, que têm afinal de contas um simples interesse pedagógico. Pereira da Silva foi vítima algumas vezes dessas discriminações de catálogos poéticos. Embora intimamente ligado aos grupos simbolistas do Rio e do Paraná, e tendo inaugurado sua carreira literária nessa atmosfera crepuscular e brumosa de “reação espiritualista”, Pereira da Silva não herdou, porém, a musicalidade dos simbolistas, nem tampouco a obscuridade, “a imprecisão de contornos e de vocabulário”, ainda que tenha guardado fidelidade “ao gosto das expressões do ritual mortuário e litúrgico”. Sua poesia era seca, sóbria, despojada. Alheou-se, é certo, da rígida cadência parnasiana, nunca respeitou a superstição da rima rica e da chave de ouro, e seus ritmos eram pobres, sua métrica não raro despreocupada e flácida. Além disto, havia na sua poética, e não só nos seus motivos, certa monotonia de processos. Sua técnica – construção do poema, da estrofe e do verso – como sua inspiração e sensibilidade, não eram nitidamente simbolistas. Mas o Simbolismo imprimiu-lhe algumas marcas bem visíveis. Como Alphonsus de Guimaraens, adorava certos termos usuais entre os simbolistas (Soror Tristeza, Dona Beleza Mística, Escada de Jacob, Irmã Morte, etc.). Suas leituras prediletas, “os seus formadores intelectuais”, como dizia Graça Aranha – Baudelaire, Poe, Rodenbach, Samain –, não lhe impregnaram o espírito: apenas lhe transmitiram uma doce magia encantatória, que foi em verdade tudo quanto lhe restou da influência simbolista. Ele afinou o espírito à melancolia desses “formadores intelectuais”, mas as suas qualidades e defeitos essenciais estavam no seu sangue, eram da própria substância do seu ser. Embora ele tenha conhecido e amado Valéry, de quem o aproximou em 1923 o Sr. Jayme Adour da Câmara, não se me deparou na sua obra nenhum vestígio, nem sequer resíduo de influência do autor de Varieté. Influências, às vezes vagas, mas sempre sensíveis e presentes, encontramo-las, isso sim, dos simbolistas franceses, além da de Poe, de Leopardi, de Musset e de Antero de Quental, dos quais ele era consangüíneo pela tristeza e pelo pessimismo. A geração do poeta começou a vida sob a influência da cultura do século XIX, da disponibilidade espiritual do século XIX, e, importando de Paris os modelos literários, como importava de Londres os modelos políticos, recebeu e adotou o Simbolismo. Pereira da Silva, aliás, quando voltou ao Rio, em l903, já trazia no espírito o veneno sutil do Simbolismo, que lhe fora inoculado pelo grupo simbolista de Curitiba, a cujo líder, Dário Veloso, ele se ligara intimamente. Um crítico paranaense, o Sr. Andrade Muricy, concordando de resto com uma observação do Sr. Tasso da Silveira, filia Pereira da Silva à estirpe dos últimos românticos, aparentando-o sobretudo de Varela. Tal classificação, aliás, coincide, até certo ponto, com uma confissão do próprio poeta das Solitudes, quando dedara que o Simbolismo entre nós veio com força e pujança, se bem que sempre procurando a sua essência no Romantismo. Entretanto, o Sr. Muricy entende que ele não parece ter-se deixado influenciar muito profundamente pela corrente simbolista, “apesar da sua estréia “nefelibata” (sic) com o livro Vae Soli!”! A verdade, porém, é que Pereira da Silva não se deixou apenas influenciar, foi bem mais longe: pertenceu ostensivamente à corrente simbolista. Tendo tido longo convívio com Dário Veloso e os simbolistas paranaenses, aqui no Rio se filiou ao grupo da Rosa Cruz, posto não tenha jamais publicado nenhum poema na primeira fase da revista de Saturnino Meireles e Félix Pacheco. Pereira da Silva, além disso, foi sabidamente companheiro e conviva fraternal dos simbolistas do Paraná, como dos do Rio. Entretanto, ao contrário do que afirmou o crítico paranaense, o Vae Soli! é tão pouco nefelibata, que tudo quanto nele há de melhor ressurge no Solitudes, sem que a crítica o tenha assinalado. Com efeito, figuram em Solitudes os seguintes poemas do Vae Soli!: “Virgens” (com algumas supressões e correções); “Dona Palidez”; (com várias alterações sobretudo na distribuição dos versos); “Sóror Mágoa” (com amplas modificações e supressão de cinco quadras; e conservação apenas de quatro, ligeiramente modificadas); “Velhinhos” (com a supressão da penúltima quadra e numerosas alterações); “Ceguinha” (com a supressão de duas estrofes e radicais alterações nas outras).
Como se vê, muito do que havia de mais autenticamente simbolista no seu livro “nefelibata” reaparecem no Solitudes, sem que a crítica de ontem e de hoje desse por isso... Não reputo de importância fundamental a distribuição dos poetas por escolas. E o próprio Pereira da Silva confessava certo tédio aos esquematismos dessas classificações. Estou, porém, neste terreno, inteiramente de acordo com Charles Morgan (Reflections in a Mirroir). Provocam natural desconfiança entre os leitores os esforços da crítica para classificar os artistas. E os artistas, eles próprios desconfiam também. Que importância tem o nome que se dá a um homem como Baudelaire? Para Saintsbury ele era um reflorescimento do Romantismo. Starkie, na sua nova edição de Les Fleurs du Mal, relembrou que já foi hábito chamar-lhe Parnasiano – pela simples razão, ao que hoje parece, de que alguns dos seus versos foram incluídos em Le Parnasse Contemporain, onde havia de tudo. Bowra trata de simbolista, juntamente com Mallarmé e Verlaine, Será isso tudo mero pedantismo? O gênio de Baudelaire era tão avassalador que havia correspondência para ele em todos os compartimentos da inspiração, e as mensagens que ele enviava levavam endereço para todos os caminhos. O homem é um só. Não será a análise crítica, da qual fazem parte as classificações, um desperdício de tempo?
Às vezes isso é exato. A parolice sobre “escolas”, “movimentos”, o que os americanos chamam trends, é perigosa, se tenta o crítico desviar-se da sua verdadeira arte de interpretação individual, para superestimar semelhanças ou diferenças que o assunto por acaso sugira. Não obstante, o artista, por mais individual que seja, não pode ser “lido” isoladamente; ele é parte do livro da sua época. Falar dos românticos, ou parnasianos, ou simbolistas pode conduzir a mania de fixar rótulos. Na mor parte das vezes, porém, é uma tentativa honesta e necessária para situar os artistas nas suas relações entre si, e, afinal, é a própria vida.
Pela mesma razão que o homem é um só, e isso é um fato, milagre singular da criação é que a negação desse fato é a blasfêmia essencial. Por isso, a conexão entre os supremos individualistas – isto é, entre os poetas –, quando pode ser realmente evidenciada, é de interesse transcendente; “transcendente” porque toda vez que tal conexão é algo mais que uma aliança artificial entre membros da mesma seita sua existência não se limita ao interesse comum ou à ambição, mas se mantém em plano superior e é um indício da verdade.
O agrupamento artificial dos poetas em “escolas”, com o mero intuito de permitir enquadrá-los facilmente nos capítulos de um compêndio, é vício nitidamente pedagógico; mas discernir a origem espiritual comum de homens tão diversos como Baudelaire e Stefan George, ou Mallarmé e Alexander Blok, é muito mais que virtude de erudição; nas condições atuais do mundo, é um serviço prestado à humanidade. Explica-se, destarte, e explica-se por muitos motivos, que ao fazermos o levantamento da significação e da importância da obra de um poeta, procuremos situar este entre as correntes espirituais de seu tempo. Só assim realmente será possível determinar a exata posição pelo menos histórica da sua obra, discriminando-lhe as origens e determinando-lhe a projeção.
Caminhos do Simbolismo
Poe e Baudelaire foram os batedores da audaciosa expedição. Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Rodenbach, Maeterlinck realizaram depois a grande rebelião. E o Simbolismo conseguiu, por esforço resoluto de libertação, muita coisa: incorporou à linguagem poética os efeitos da música; suprimiu da Poesia tudo o que era anedótico e narrativo; despojou-a corajosamente de toda sobrecarga de retórica e artifício; libertou-a da tirania da clareza e da realidade; aceitou a colaboração inefável do alógico e do mistério. Caminhou, pois, no sentido da Poesia pura, como a definiria mais tarde Valéry. Aliás, esse problema da Poesia pura merece debate e esclarecimento. Trazido à discussão por Paul Souday, a propósito de um discurso do abade Bremond, em 1915, serviu de pretexto para uma lúcida explicação do próprio Paul Valéry. Segundo o poeta de Charmes, a Poesia pura seria aquela que resultasse da supressão dos seus elementos prosaicos, quer dizer, de tudo aquilo que pudesse ser dito, sem prejuízo, em prosa: tudo quanto pertencesse ao plano da História, da Filosofia, da lenda, da anedota, da moralidade, que, portanto, existindo por si mesmo, sem o concurso essencial do ritmo, não é em verdade Poesia. E esclareceu Valéry que essa espécie de Poesia seria apenas um rumo, um roteiro, uma orientação, porquanto sua total realização era de uma impossibilidade quase absoluta. Como se sabe, a Poesia de Valéry não é uma “mistura”: é uma “combinação química”. Aliás, segundo comenta Bowra, Valéry, que optara por Apolo contra Dionisos, sendo o poeta hiperconsciente de Marcel Raymond, era o mais notável exemplo de fusão, na Poesia, entre os impulsos intelectuais e os emocionais, e assim, nos êxitos como nos malogros, sua obra é um padrão pelo qual os poetas de hoje podem medir a sua própria Poesia. Talvez não tenha sido grande sua influência direta na Poesia contemporânea, pela singela razão de que sua linguagem raramente adquire aquele tom familiar que permite ao leitor sentir-se tão à vontade que possa deixar a leitura correr e apreender os entretons das palavras. O problema ainda se torna mais complicado pelo fato de que Valéry, como autêntico francês, raramente emprega qualquer expressão obscura, e, frase por frase, é de uma clareza que agrada ao espírito, e, não obstante, o autor de La Jeune Parque conseguiu escrever, como já foi dito com propriedade, “o mais obscuro poema da língua francesa”. É impossível dar uma resposta breve e clara à pessoa que perguntar: “E por que isso?” Aqui cabem as perguntas que Charles Morgan formula no seu ensaio sobre a herança do Simbolismo. Por que homens da pureza estética de Rilke, da integridade intelectual de Valéry, do poder imaginativo de Yeats, foram tantas vezes levados ao que, para o leitor comum, parece obscuridade intencional, e como sucedeu que Stefan George se encontrasse, por fim, em condições de ser aclamado como líder poético pelos nazistas, cujo fanatismo era a completa negação do ideal que fora a fonte da poesia dele? E por que tantos poetas de 20 e de 30, homens profundamente sinceros e dotados de intuição poética, nos dão a impressão de escrever acorrentados, numa agonia frustra, como atormentados por uma espécie de gagueira espiritual? “Se existir, nas respostas a essas perguntas, algum elemento comum, ele será uma chave, não só para as dificuldades intrínsecas da Poesia, senão também para o alheamento da Poesia ante a vida contemporânea”. O Simbolismo procurou, até certo ponto, dar essa difícil resposta: procurou estabelecer o contado entre o poeta e o leitor por meio de símbolos. “Os símbolos”, esclarece Morgan, “devem exercer sobre o leitor uma influência associativa e, portanto, evocativa; eles não terão essa influência, a não ser que agitem no leitor reminiscências íntimas e profundas, Recordemos que Baudelaire falava de forêts de symboles que miravam o homem avec des regards familiers. Se os símbolos deixam de ser familiers, se em menos de um século os símbolos do Cristianismo e os do Classicismo abandonam a consciência do homem, a Poesia fica privada dos meios primitivos de comunicação e precisa descobrir novas expressões. Assim, Rilke inventou uma terminologia e Valéry, outra; Yeats recuou até às lendas irlandesas; e os seus sucessores, buscando símbolos que não se divorciassem da vida moderna, encontraram-nos nas máquinas, Apenas as máquinas não são familiers no sentido baudelaireano. A maioria dos espíritos ainda vê a máquina objetivamente; “nenhum princípio universal nos é lembrado pelo seu nome nem pela sua natureza”. Isso perturba a “associação” e impede a “compreensão” do público. E nesse fenômeno reside, sem dúvida, como observa o romancista inglês, a dificuldade fundamental dos poetas modernos, herdeiros do Simbolismo. A decadência dos antigos símbolos lhes impôs a dupla tarefa de exprimir-se e de criar os meios de expressão. Alguns abordam o problema através de uma luta gigantesca para superá-lo – Valéry pela penetração intelectual, Rilke pelo supremo desprendimento, numa ascensão a alturas de onde possam ver a terra na integração de um mapa; Yeats, pelo encantamento e pelo uso de lendas ainda não tornadas inteiramente vulgares. Outro caminho foi desbravado por Alexander Blok, com as circunstâncias especiais de sua vida. E ainda outro por Stefan George, que tentou ligar os ideais simbolistas com a vida, isto é, desejando o impossível: que o ideal lançasse âncoras na realidade... Daí os equívocos e as tristezas que a sua atitude causou.
Todos esses problemas, cuja meditação nos foi suscitada pelo ensaio de Charles Morgan, são ainda problemas sem solução, porque são problemas de ontem, de hoje e de amanhã, problemas de todos os tempos, uma vez que da essência mesma da própria Poesia, isto é, no pensamento de Valéry, da captura da hidra poética... Mas não resta dúvida que no balanço final o saldo a favor do Simbolismo é considerável: sua influência chegou até nós. Suas mensagens eram “cifradas”, não há dúvida. Mas houve – Deus louvado! – quem as entendesse. É sempre assim: as cartas em Chinês também nos parecem ilegíveis e, no entanto, há muito quem as leia e entenda... Esse fato encerra uma lição de humildade. Nossa incompreensão diante de certos poetas é completa. Entretanto o defeito não está neles, mas em nós...
O Simbolismo no Brasil
O Simbolismo chegou ao Brasil por volta de 1893; talvez um pouco antes. Estávamos em pleno esplendor do Parnasianismo. Alberto de Oliveira publicara os Poemas e Sonetos em 1886; Versos e Versões de Raimundo Correia haviam aparecido em 1887; e no ano seguinte, 1888, Bilac publicava Poesias. Só em 1893 Cruz e Sousa, reagindo corajosamente contra os parnasianos, publica Broquéis. E em 1901, representando já uma reação organizada e deliberada contra a poesia vigente, surge o primeiro número da revista Rosa Cruz. Começava, pois, a rebelião que havia de ser tão tumultuosa e efêmera. Não obstante houvesse quem considerasse o Simbolismo um simples equívoco, como Bernardo Fay, a escola nova surgiu com grande ímpeto e com muito barulho.
Afrânio Peixoto relembrou, certa vez, na intimidade desta Academia, que em 1900 “alguns arroubados e tontos haviam importado da França a moda nova do Simbolismo”.
No Sul, Cruz e Sousa, Dário Veloso, Emiliano Perneta, Silveira Neto. No Rio, Félix Pacheco, Pereira da Silva, Oliveira Gomes, Mario Pederneiras, Gonzaga Duque, Carlos Dias Fernandes, Castro Meneses; em Minas, Alphonsus de Guimaraens e seu irmão Archangelus; no Norte, Júlio Afrânio, que compunha uma Rosa Mística em cinco cores, impressa em Leipzig, num poema em que, como as vogais de outro maluco, os sentimentos e o ambiente musical vão governando as cores do papel e os tons dos vocábulos”...
Eram todos absolutos. Não tinham uma idéia: tinham uma fé. Pereira, no fim da vida, considerava essa “arremetida” “violenta”, “excessiva mesmo”, mas se orgulhava de ter pertencido a essa “ordem dos Templários do Sonho...” Esses homens de letras, esses místicos envelheceram; mas, no fundo, o simbolista continuava... Baudelaire – diz Afrânio Peixoto – era o deus da adolescência que ressurgia em todos: estava a cavaleiro de duas correntes literárias: era o primeiro simbolista e era o último parnasiano. Baudelaire era o ar, para os simbolistas. Mas, no Brasil, a preocupação de liberdade e mistério que caracterizava o movimento subversivo da poesia trouxe grave perturbação aos claros espíritos formados na disciplina parnasiana. O Simbolismo era considerado hermético e louco. Tão difícil, tão esotérico, tão obscuro, que havia um “Dicionário” especial, para dar aos leitores a chave dos impenetráveis segredos das suas poesias... Os espíritos mais lúcidos estacaram perplexos diante da nova escola. Veríssimo não a entendeu nem a aceitou. O que não causa espanto, quando se recorda que Eça de Queirós, tão informado e sensível, tinha um sagrado desprezo pelo movimento, na hora mesma em que este produzia na França poetas como Verlaine, Rimbaud e Mallarmé... Sainte Beuve não identificou o gênio de Baudelaire. Anatole France subestimou a poesia de Mallarmé. E Benedetto Croce, na sua Estética, nem sequer citou o nome de Baudelaire. O Sr. Luiz Edmundo, ao fazer a crônica do Rio de Janeiro do seu tempo, tão viva e desabusada, evocando “as hostes novas da nossa Literatura”, dá-nos do Simbolismo uma imagem anedótica e caricatural, mas, além de interessante, útil à compreensão da mentalidade da época. Era tal a idiossincrasia dos velhos boêmios literários de então diante da escola nova, que o poeta Raul Braga ao entrar no Café Paris, do Largo da Carioca, ouvindo pronunciar numa roda de escritores jovens os nomes de Baudelaire, Verlaine e Rollinat, conserta os punhos, conserta o bigode, conserta o pigarro, olha de soslaio para a mesa da esquerda, e grita, mostrando três dedos:
– Três idiotas! Decorem: três idiotas! Prefiro Dr. Victor Hugo, do Santos Maia. Vocês andam com a cabeça cheia de Mercure de France. Le simbolisme... Pluff!
Havia nos arraiais simbolistas algumas figuras realmente cômicas e irritantes na sua intolerância subversiva. Gustavo Santiago era uma delas. Filho de um negociante português e educado em Coimbra, Gustavo Santiago, de quem João do Rio nos dá um singular retrato em O Momento Literário, era o poeta do Cavaleiro do Luar, comia saladas de violetas com azeite e vinagre, pregava o novo credo e desancava os “velhos”:
O que eles querem, afinal, é o status quo, a convenção de fórmulas que o tempo e um uso imoderado tornam antipáticas e sediças. Pode-se mais admitir, pelos dias que correm, o respeito pelos adjetivos com a acepção rigorosa do dicionário, o número de sílabas de um verso concordando com a métrica do Castilho, o pronomezinho levado a sério só para não dar dores de cabeça ao Dr. Hemetério dos Santos, um homem que até parece que ficou preto de estudar gramática? Detestemos, por princípio, a mecânica das coisas. Nada de literatura de peso e de medida, observando regulamento e estabelecendo horários, como os das estradas de ferro. Fora a poesia da consoante de apoio, do hemistíquio, do ritmozinho certo, da estrofe recortadinha, facetadinha e torcida como uma rosca de tostão, feita para a delícia do paladar do burguês que pensa devagar e não muda, nunca, por burrice ou por hábito!
Fagundes dos Santos, autor de um poema intitulado “Dona Urraca”, ao entrar na Livraria Garnier, pergunta misterioso:
– Um sujeito vesgo e tolo, que acode pelo nome de Bilac, ainda tem a mania de publicar versos nos jornais?
Essa irreverência, essa intolerância, essa fúria iconoclasta – tal como havia de suceder, muito mais tarde, com os modernistas... visava deliberadamente os membros mais ilustres desta Casa. Orlando Teixeira persignava-se ao encontrar José Veríssimo... Carlos Dias Fernandes escrevia um artigo demolidor contra a glória de Coelho Neto... Félix Pacheco, na Rosa Cruz, atirava-se, simultaneamente, sem hesitação e sem pena, contra o autor severíssimo da História da Literatura Brasileira, “com a abundante parlapatice de sua crítica irrisória, fútil, rusguenta, nariguda e fanhosa”; contra Medeiros e Albuquerque, “estudioso cientista e esperançoso literato”; contra “as confusões e os erros” de Sílvio Romero –, contra “todos os medalhões da Academia Brás Cubas”, em suma...
Saturnino Meireles, numa carta a Maurício Jobim, declarava tranqüilamente: “Se eles tiverem a audácia de inaugurar o busto da azêmola do Casimiro no Passeio Público, juro-te que me suicidarei de vergonha e asco”. Soara a hora subversiva da deposição dos ídolos. A sublevação dos espíritos era ruidosa. Todos os deuses antigos seriam derrubados! Os do país e os do estrangeiro! Todos... E em lugar de Hugo, de Leconte de Lisle, de Banville. vinham, gloriosos e felizes, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud. Mallarmé, Maeterlinck... No Olimpo indígena as substituições se faziam com simplicidade: em lugar dos grandes parnasianos da Academia –, de Raimundo, Alberto, Bilac – instalavam-se nos altares novos ídolos – Cruz e Souza, Luís Delfino, Alphonsus de Guimaraens. Como a batalha era violenta e indiscriminada – uma espécie de “guerra total” da Literatura – os grandes iconoclastas não poupavam ninguém, e nas suas arremetidas demolidoras atiravam-se até – coisa curiosa! – contra o próprio crítico oficial do Simbolismo, o velho Nestor Vítor, “com a sua propaganda negativa, trapalhona e mal feita”... Singular destino o deste lúcido e honrado crítico do Simbolismo: mestre sem discípulos, foi negado e desprezado por todos aqueles que considerava seus filhos espirituais, e de nenhum deles recebeu em vida a homenagem, já não digo de uma admiração irrestrita, mas ao menos de uma gratidão efusiva e sincera. Vingava-se ele com a sua frase habitual:
– Coitadinho do Félix... Coitadinho do Cruz... Coitadinho do Baudelaire...
Aliás, os simbolistas brasileiros tratavam com grande rudeza, também, os maiores simbolistas portugueses, como Eugênio de Castro. Lopes Vieira e outros, cujo “ridículo decadismo” “havia inspirado tantas e tantas coleções de sandices, em prosa e verso”... Depois de atacar a “frívola bacharelice” de Eugênio de Castro, que o Sr. Carlos Dias Fernandes declarou ser um louco sem ritmos e sem inteligência”, o diretor da Rosa Cruz escreve um artigo contra Jean Moreas, a quem chama de “medíocre cintilante e fidalgo”... O aparecimento, em 1901, da revista Rosa Cruz (saiu o 1.o número da fase inicial em junho e o 4.o em setembro do mesmo ano; na segunda fase saíram mais alguns números: junho, julho e agosto de 1904), marcou a etapa de mais viva combatividade do grupo metropolitano do Simbolismo. Colatino Barroso, em 1896, entretanto, já fundara um grande núcleo revolucionário: “Os novos”. Tivera uma revista efêmera: A Tebaida – e deitara manifesto, e fizera programas... Depois foi que surgiu o grupo da Rosa Cruz, que era o P. C. do Simbolismo brasileiro. Félix Pacheco, líder do grupo, malgrado sua precoce austeridade, freqüentava o Antro, república de escritores e poetas da corrente nova (Carlos Dias Fernandes, Tibúrcio de Freitas, Saturnino Meireles, Nestor Vítor). Na revista Rosa Cruz, dirigida por Saturnino Meireles, cujo ídolo de permanente e entusiástica devoção era Cruz e Sousa, que já havia morrido, escreveram – nos seus efêmeros mas gloriosos quatro meses de circulação da primeira fase – os seguintes poetas e escritores: Saturnino Meireles, Carlos Dias Fernandes, Maurício Jubim, João Barreira, A. S. Castro Meneses, Cabral Alencar, Luís Delfino, Félix Pacheco, C. Tavares Bastos, João Andréia, Colatino Barroso, Rafaelina de Barros, Alphonsus de Guimaraens, Paulo Silva Araújo, Amadeu Amaral, Miguel Melo. Pereira da Silva freqüentava a redação, apoiava a turma da revista, mas nos primeiros tempos não publicou nada nas suas páginas, só iniciando sua colaboração na segunda fase (em julho – “Maurice Maeterlinck” (prosa) e “Segunda voz” (soneto); em julho – “De interna consolatione...” (prosa) e “A outra luz” (soneto); em agosto – “Adoração”. Vale a pena transcrever duas páginas dessa época: (*)
Segunda voz
Não há de ser de espírito infecundo
Que hás de alcançar a Terra Prometida
(Esta verdade mais vejo incendida
Quanto mais em meu ser penetro a fundo.)
É preciso ter luz, o olhar profundo,
O olhar que as próprias trevas intimida,
E contemplar dos ápices da vida
A vida, o mundo, e a um tempo a vida e o mundo.
É preciso, sem nada que conforte,
Ser sempre o ser por entre a vida e a morte,
A luz e a treva, os loiros e os abrolhos...
É preciso, nas chamas da loucura,
Subir a tal altura, a tal altura,
Que tudo fique luz diante aos olhos.
A Outra Luz
Além da lua, além do sol que assiste
Todos os sóis pelo infinito afora,
Outra luz há também fecundadora,
Apesar de tão pálida e tão triste...
Esta não tem fulgor de lança em riste,
Nem tons de ocaso ou flâmulas de aurora;
Mas uma outra feição tão cismadora
Que nem no mundo sthereal (*) existe.
Ela aparece, às horas singulares,
Aos olhares, aos únicos olhares
Dos Mártires dos íntimos martírios...
Só o sábio a conhece e o poeta a sente;
Que ela é quem muda luminosamente
Todas as suas lágrimas em lírios.
Além de versos e artigos originais, o órgão oficial dos simbolistas transcrevia habitualmente poemas de Cruz e Sousa, páginas de Raul Pompéia, prosa e verso de Verlaine, Mallarmé, Maeterlinck, Tristan Corbière, Rimbaud, Peladan, além de uma página de Nietzsche e um ensaio de Maurice Bidgeon sobre Ibsen. Os simbolistas paranaenses também tiveram sua revista, O Cenáculo. Mas de importância meramente local e medíocre projeção literária. Em Belo Horizonte, igualmente em 1901, surgiu uma revista do gênero: Minas Artística, que tinha como diretores Horácio Guimaraens, Edgard da Mota, Alfredo Sarandi, Álvaro Viana e Carlos Raposo. Deu três números e morreu. Mas, em 1902, Álvaro Viana faz nova tentativa, lançando uma revista de poesia – Horus, na qual colaboram os poetas – e só poetas! – Jacques D’Avray, Alphonsus de Guimaraens, Villy Reichardt, A. Batista Pereira, Guerra Duval, Padre Severiano de Resende, Edgard da Mota, Archangelus e Horácio Guimarãens. Outras revistas menos significativas e ainda mais efêmeras surgiram no Rio: Vera Cruz, de Neto Machado, Oliveira Gomes e Austregésilo, A Máscara, Delenda Carthago, A Meridional, de Elísio de Carvalho, Ateneida, de Trajano Chacon e a Revista Contemporânea de Luís Edmundo, que teve vida mais longa, atingindo em 1901 o seu 3.o ano de existência. Os títulos das revistas, a sua multiplicidade e a contradição dos seus programas, são índices claros da geral confusão existente. Todas elas, porém, têm um traço comum que as identifica: o espírito insurrecional. São órgãos de combate e demolição...
Outro fato singular que caracteriza a época: a originalidade da apresentação gráfica dos livros: Rosa Mística, de Júlio Afrânio, tem na capa as cores do arco-íris... Manchas, de Antônio Austregésilo, trazem no frontispício manchas negras de marcas digitais. Estácio Florim faz um livro – Lua-cheia – mas não acha quem o imprima, pois deseja dar-lhe uma forma lunar, com os versos formando círculos... Cardoso Junior pensa publicar o “Primeiro soneto” em quatorze largas páginas – cada uma com um verso apenas... São as exterioridades frívolas e inconseqüentes do movimento. Nada significam.
Contudo, o entusiasmo é caloroso e unânime. E os revolucionários, mais para hostilizar os chefes parnasianos do que por outro motivo, elegem um Príncipe dos Poetas Brasileiros: Luís Delfino. A festa é ruidosa e solene, no Teatro Apolo, mas o discurso oficial não o faz um poeta, senão o velho Rocha Pombo, que é historiador... Entretanto, os poetas, em delírio, aclamam o Príncipe, que recebe as homenagens um pouco contrafeito e encabulado: – Vitória! Vitória! Vitória!, gritam todos.
Curiosa contradição do movimento, que se repetiria mais tarde com a revolução surrealista: apesar da sua índole aristocrática, os simbolistas lêem Marx, Bakounine, Krotkmine –, e enfaticamente falam em reivindicações sociais... Eles não querem só a revolução literária, desejam também a revolução social. Mas, no fundo, todos são apenas essa coisa bela e simples, incomparável e indefinível: poetas... Nunca fizeram mal a ninguém. Nem mesmo os parnasianos, que continuavam a passar muito bem, obrigado, gozando de boa saúde e fazendo versos impecáveis.
Apesar do ímpeto e do barulho, porém, o Simbolismo, confessemo-lo francamente, foi, como disse o Sr. Carpeaux, uma revolução malograda. Dele restaram, além de uma difusa influência, obscura e vaga, três ou quatro grandes poetas inesquecíveis: Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens, Mário Pederneiras, Marcelo Gama... Os outros, ou regressaram ao Parnasianismo, ou foram devorados pelas exigências cotidianas da vida, ou caminharam, os pós-simbolistas, para o modernismo... Para três rumos seguiram, portanto, os remanescentes do Simbolismo: o Parnasianismo, o Neo-romantismo, que teve uma variedade cotidiana e intimista de grande força encantatória, e, muito mais tarde, a revolução modernista. E bem apuradas as coisas, nos melhores poetas dos três grupos sentem-se ainda as influências do Simbolismo nítidas e fortes.
O Simbolismo brasileiro teve quatro ou cinco áreas de influência, aglutinando poetas e escritores de valores muito desiguais: a área paranaense, cuja importância foi medíocre do ponto de vista da criação poética, mas que teve incontestavelmente importância histórica e certa influência em diversos centros literários do país, com Emiliano Perneta, Dário Veloso, Nestor Vítor e a fase inicial de Pereira da Silva; a área metropolitana, que gravitou em torno do nome de Cruz e Sousa, apesar de já falecido, com o grupo da revista Rosa Cruz, e com projeção em muitos Estados; a área mineira, onde havia um reduzido grupo secundário, mas que o grande Alphonsus de Guimaraens, sozinho, encheu, com a magia de seu estro, embora permanecendo calado e obscuro, entre suas melancólicas montanhas de Mariana; e a área mais recente, que poderíamos chamar da segunda geração simbolista, que muito deve também ao Parnasianismo, e que, sob certos aspectos, é mais importante que as outras, compondo-se de dois núcleos: o do Fon Fon, chefiado por Mário Pederneiras, Lima Campos e Gonzaga Duque, e ao qual pertenceram Olegário Mariano. Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra, Eduardo Guimarães. Felipe d’Oliveira, Homero Prates, Rodrigo Octavio Filho; e o dos independentes, que não formavam grupo organizado, mas que era constituído de algumas figuras muito significativas: Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Murilo Araújo, Cecília Meireles, Onestaldo Pennafort, Tasso da Silveira. Mais jovens do que os simbolistas da primeira hora, e mais felizes do que eles, esses poetas revelaram maior capacidade de duração e sobreviveram aos que fundaram a escola no Brasil.
Mas – é o caso de perguntar – por que teve tão curta vida, e tão precária, o Simbolismo entre nós? Por motivos compreensíveis e explicáveis, sobretudo de ordem psicológica. Nós, brasileiros, somos, por formação e temperamento, naturezas inclinadas à extroversão. Só dificilmente, e por exceção, nos poderíamos aclimar àquela atmosfera de penumbra e de mistério, de recolhimento e espiritualidade, de introversão, em suma, que foi o Simbolismo.
O legado psicológico, que nos veio de Portugal, pelo sangue e pela formação, foi o da extroversão nacional. Destarte, defeitos e qualidades, em nossa Literatura, decorrem em grande parte dessa velha herança de família.
Assim como a Literatura portuguesa, na observação agudíssima de Castelo Branco Chaves, é pobre em valor humano, a Literatura Brasileira sempre padeceu da mesma deficiência.
A nossa Arte tem vivido, como a portuguesa, “das oscilações das circunstâncias; tem, pois, um sentido condicional e aleatório”, resultando daí a sua “fraqueza substancial e o seu débil valor humano”, o que também aconteceu do outro lado do Atlântico. O nosso gênio – como o do povo que nos formou – “é incerto, hesitante e vazio; inclinado à exterioridade, à superficialidade”. Disso decorre a facilidade com que, como os portugueses, aprendemos, imitamos e adaptamos, e também daí provém a nossa ausência de originalidade e profundeza. Vivemos, como os portugueses, “do eventual”, “sujeitos à sua oscilação e caprichos”, conduzidos ao sabor da corrente, fascinados pela diversidade das aparências, fluindo com as idéias e as formas que fluem. Tudo efeito da nossa vocação espiritual para a extroversão, a ciclotimia. Aplica-se ao brasileiro a aguda observação de Kayserling a propósito do português: somos dos povos que mais facilmente se exprimem em línguas estrangeiras e talvez o que põe mais cuidado e obtém maior êxito em as falar com propriedade e correção de pronúncia... Essa característica luso-brasileira dá bem a medida da nossa extroversão e da nossa ausência de originalidade. Os povos de personalidade forte – mais capazes de vida subjetiva e profunda, quando sabendo acautelar as prerrogativas essenciais da sua vida interior – só se sabem expressar bem na sua própria língua, que é a única que modela e representa a força intraduzível do seu ser. São assim o espanhol, o inglês, o francês. Entre nós, também, como em Portugal, a cultura nem sempre é uma síntese e uma fusão de conhecimentos. A nossa concepção de Cultura é a de que o conhecimento é uma aquisição e acumulação de fatos e doutrinas que são a “última palavra” no estrangeiro. O brasileiro é em geral bem informado e erudito, mas raramente culto, no sentido autêntico da palavra. De tudo isso nasce a nossa ostensiva predileção pela Filologia, pela História, pela Sociologia, pela polêmica sarcástica e fácil. Falta-nos a resistência interior “que singulariza o caráter, lhe dá a individualidade inconfundível que se projeta em novas formas de arte e em originais concepções do Universo”. Falta-nos, por isso também, até certo ponto, força dramática e criadora”. E assim se explica a nossa inaptidão para as formas abstratas do pensamento, para a introversão e para o subjetivismo. Tal fenômeno, de verificação cotidiana, torna singulares, entre nós, figuras como Machado de Assis, Farias Brito, Pereira da Silva – homens, todos os três, que viveram fechados dentro de si mesmos, em subterrânea introversão, o que prova o perigo das generalizações, como a do Sr. João Gaspar Simões, que considera o brasileiro absolutamente incapaz de interiorização e abstração. Acha o ensaísta português que nós não podemos aspirar a um amadurecimento das faculdades de observação psicológica a que só um europeu, de certo modo, pode aspirar. Já vimos que o Sr. Castelo Branco Chaves rechaça essa tese porque coloca os portugueses, apesar de europeus, na categoria linear de extroversão em que o Sr. Gaspar Simões situa os brasileiros. É falso, pois, generalizar a noção da incapacidade do escritor americano (e não só o brasileiro) para descer ao fundo da alma humana no que nela há de mais complexo, pois o Brasil já deu um Machado de Assis, um Graciliano Ramos, um Cornélio Pena, um Otávio de Faria, um Cyro dos Anjos, um Lúcio Cardoso, uma Clarice Lispector, que são um desmentido formal e irrespondível à tese do Sr. João Gaspar Simões. O erro, porém, está, apenas, na generalização. Como já dissemos, essa incapacidade, fruto da nossa extroversão nacional, é tanto brasileira como lusa, mas comporta exceções ilustres, quer na ficção, quer no pensamento puro, quer na Poesia. Em todo o caso, é essa tendência à extroversão, tão caracteristicamente brasileira, que explica o fenômeno do precoce malogro do Simbolismo, que teve vida breve e influência muito limitada no Brasil, por ser um movimento de índole subjetiva e, pois, de introversão. E é esse extremado objetivismo, essa unânime extroversão que explica por sua vez a vitória e a duração do Parnasianismo, simetricamente colocadas ao lado da débil repercussão e da rápida morte do Simbolismo entre nós. Seria talvez justo, de passagem, acentuar a utilidade que teve a disciplina parnasiana, de certo modo, no meio da nossa vocação romântica para a exuberância e o excesso: os poetas e escritores que fizeram seu estágio no soneto prussiano, recolheram boas lições de contenção e equilíbrio, e aprenderam a dominar o demônio da facilidade, tão perigoso e traiçoeiro nas terras cálidas do trópico... Todos os escritores, no Brasil, nos últimos quarenta anos, com exceção de Euclides da Cunha e José Veríssimo, surgiram invariavelmente com um soneto parnasiano. Todos, mesmo os bissextos, como diz o Sr. Manuel Bandeira, tinham seu soneto célebre... Mas seria desarrazoado negar utilidade a esse fenômeno literário. O soneto era, na vida dos nossos poetas uma ginástica utilíssima: dava-lhes agilidade e firmeza. Não podendo ingressar na vida civil das letras sem o serviço militar obrigatório do soneto, os nossos poetas começavam a sua carreia exercitando se em algumas práticas salutares: freqüentando o Dicionário de Rimas e aprendendo a contar sílabas pelos dedos. Resultado: enriqueciam o vocabulário e se habituavam a respeitar as leis do ritmo. Esse exercício concedia-lhes, além de tudo, outro proveito: libertava-os das seduções perigosas do desleixo formal e vernáculo, que, comprometendo muitas vezes a estrutura do verso simbolista, tanto tem prejudicado as últimas gerações, cuja formação nada deve evidentemente ao soneto. O soneto, nem tenham dúvida, como composição literária, era um exercício necessário ao aprendizado das letras. Devia até ser ensinado nas escolas, para que os nossos meninos aprendessem a amar a grave beleza da síntese e do ritmo. O soneto é uma severa lição de contenção, de equilíbrio, de compostura formal. Quem o pratica aprende a escrever com decoro e comedimento. Muita falta, por esse lado, ele tem feito aos poetas de hoje. Mesmo porque a aparente facilidade do verso livre é diabolicamente difícil – além de traiçoeira... Contudo, em virtude do seu uso e abuso, nos bons velhos tempos do Parnasianismo, ele ficara literalmente desmoralizado. E passou a ser considerado uma praga literária. Porque grassava em todo o pais, de norte a sul, com caráter nitidamente epidêmico. Mas nem por isto foi desdenhado pelos simbolistas, que se armaram cavaleiros para combater “o colapso da sensibilidade” do Parnasianismo, conduzindo na sua panóplia a arma favorita dos seus adversários...
A obra do poeta
Num país de prodigiosas precocidades literárias, Pereira da Silva foi um poeta sem pressa. Deu-nos o seu primeiro livro – Vae Soli – aos 27 anos de idade, e só 15 anos depois, aos 42 portanto, publicou o segundo – Solitudes. Como explicar tão longo hiato de mutismo? O primeiro livro, de repercussão muito limitada e discreta, não dera ao tímido Pereira da Silva uma sensação de segurança tranqüila e serena para prosseguir... Depois, deviam juntar-se a este motivo de ordem literária os motivos de ordem pessoal, que atormentaram terrivelmente a vida do poeta nesses três lustros sombrios de pausa. A publicação de Solitudes, porém, equivaleu a uma autêntica consagração: o livro foi unânimemente saudado pela crítica como um dos maiores e mais significativos do seu tempo. E o poeta, que até então vivera ignorado, curtindo em silêncio a amargura da sua solidão e da sua obscuridade, conheceu um instante festivo de glória. Isto, aliás, não o comovia, nem o perturbava, porque ele mesmo já dissera num poema:
Senhor meu Deus! não move minha pena,
Vós o sabeis, o impulso da vaidade.
A glória deste mundo é bem pequena,
E não nasci para a imortalidade...
Mas, depois desse livro feliz, Pereira da Silva não pára mais e publica com regularidade sistemática, um livro de dois em dois anos: em 1919 dá-nos o Beatitudes; em 1921, o Holocausto; em 1923, o Pó das Sandálias. Só então sobrevém na sua atividade uma outra pausa de silêncio: Senhora da Melancolia surge em 1928, e inaugura uma nova fase na vida do seu espírito. Por fim, em 1940, publica Pereira da Silva o seu último livro: Alta Noite. Dois volumes inéditos deixou ele: um contendo dois poemas – “Os homens de Deus” e “Milagres de Cristo”; o outro, mais dois: “Intranqüilidade” e “Meus irmãos, os poetas”.
O seu livro mais importante, e o mais típico e significativo, foi o segundo: Solitudes. Embora Vae Soli não tenha tido maior repercussão, o poeta já revelava nele todas as suas “constantes líricas”, e as qualidades fundamentais do seu espírito: a melancolia, o pessimismo, aquele brumoso e desconsolado subjetivismo que o acompanhou por toda a vida. Nessa obra Pereira da Silva, muito identificado então com os simbolistas paranaenses, além de utilizar com assiduidade o argot poético da moda, a que foi fiel, aliás, até os seus últimos poemas (“D. Mística”, “D. Morte”, “D. Melancolia”, “D. Palidez”, “Santa Tristeza”, “Soror Mágoa”, “Senhora da Melancolia”, etc.), tenta, embora com discrição e timidez, o verso livre, pelo qual nunca teve, de resto, o menor entusiasmo. Pereira da Silva fez transfusão de alguns poemas, os mais marcantes, de Vae Soli, no Solitudes, o que, como já assinalei, a critica não percebeu.
Solitudes é, sem a menor duvida, o ponto mais alto da obra do poeta. É aquele em que encontramos, na sua plenitude, a complexidade interior do grande introvertido que ele foi: a inadaptação, o desajustamento, a marginalidade, o mistério subterrâneo do seu ser noturno e inquieto. Da sua paisagem interior nos dá este livro uma imagem fidelíssima, carregada de pesadas sombras, onde o instinto da morte está sempre presente. Pereira da Silva descreve com insistência e certa voluptuosidade o fenômeno da destruição e do renascimento na germinação da terra:
Se a Morte é sempre um véu que o gênio descerra
A Vida é o mesmo pó e a terra atrai a terra.
Oh! Bendita atração! Bendito amor fecundo
Que nos faz renascer no amor do mundo!
Depois, mostra-nos o que é para ele o espetáculo da vida:
Noite... sombra... silêncio... indefinida
angústia imponderável pelo ambiente.
Penso, em meu leito, como um ser inconsciente:
– Mais um dia de menos para a vida...
Com que melancolia fala da tristeza de pensar!
Oh! A tristeza amarga de quem pensa!
– O Tédio, o Spleen, o ideal – doença da vida
Poe, Baudelaire, Leopardi! Vossa doença!
Tocado de dúvidas e incertezas, esse manso pessimismo niilista, que tudo nega e destrói, é a nota invariável deste livro:
Que comigo nasceu e anda comigo.
É essa a tonalidade geral do livro: solidão, negação, sombras noturnas, tristezas... Solitudes do espírito, solitudes da vida, solitudes do coração, solitudes da natureza... E todas essas solitudes, em última análise, se resumem numa única, que é a maior e mais cruel na vida do poeta: a solitude do amor. Abandonado e só, ele vê para a sua vida uma única solução – a morte, que é o único bem:
És o único bem: tal me apareces:
Sonho... sono... silêncio... solitude...
Bendita sejas tu que te ofereces,
Morte, depois de tudo quanto ilude!
Coube-lhe, na partilha do amor, o quinhão mais amargo: o sofrimento. Mas o sofrimento, no pensamento machadiano, é ainda a melhor parte da vida. O mal do amor, “que só no amor tem cura”, é fonte inestancável de poesia para o poeta. No tesouro do seu coração o poeta guardou essa grande dor, pungente e grave, e transformou-a em Poesia. Foi o seu milagre – e foi a sua evasão e consolo. O livro que se segue a este, o Beatitudes, publicado em 1919, é talvez menos denso, menos profundo, menos homogêneo que o Solitudes. Mas tem sobre este uma vantagem: é também menos opressivo. E é mais variado, mais permeável. Não há, nele, porém, propriamente beatitude: o que há é ainda dúvida e tristeza. Poeta elegíaco, o seu terceiro livro mantém-se ainda na mesma atmosfera de dor, desengano e melancolia.
Bem vos compreendo, seres sensitivos,
Que interrompeis vosso caminho diante
Dos trechos, doces como lenitivos,
De um harmonium de cego mendicante.
.....................................................................
Bem vos compreendo a vós almas votadas
Às emoções e concepções extremas,
Que jamais conseguistes realizadas
Nos vossos dramas ou nos vossos poemas!
Bem vos compreendo, corações amigos,
Irmãos gêmeos nas mesmas desventuras,
Mágoas iguais, idênticos perigos,
Desilusões presentes e futuras!
O poeta, aí, começa a sentir-se envelhecer, e o travo dessa verificação torna-lhe ainda mais amarga a alma:
Hoje, olhei-me no espelho! Que mudança,
De desenho e feições a do meu rosto!
Que fácies cavo, magro, decomposto
E diferente do que tinha em criança!
Como o tempo é minaz, a vida cansa
E ficamos no mundo a contragosto,
Sentindo o próprio corpo mal disposto
E perdendo em nós mesmos a confiança!
Como nos punge, no declínio morno
Do nosso Dia, ver a vida em torno
Arder nas mesmas chamas imortais!
Que contingência a de ficar-se velho,
Pressentindo que um dia, à luz do espelho,
O nosso olhar não nos conhece mais!
Introvertido que não sai jamais de si mesmo, ele, que afirmou certa vez a poesia não estar nas coisas, mas em nós, confessa no seu “Noturno”:
Noite. Cidade quieta, adormecida.
Ando comigo. Nenhum circunstante.
Faz-se a rua mais longa, mais distante
Mas deliciosamente indefinida...
Como me sinto d’alma comovida
A cada sombra que se estende diante!
Meu passo incerto – passo de passeante,
Cansado de passar por esta vida!
Vou meditando: Como a sorte é rude,
A alma sem fé, o corpo sem saúde,
O coração um desengano lento!
E a todo instante minha sombra ao lado.
Parece viva do meu pensamento!...
E dirá, adiante, descrevendo a Introspecção:
Dia sem luz. Minh’alma retransida
De dor pressente a angústia do Futuro
Ao contemplar, como num poço escuro,
Sua própria miséria refletida...
Deus dos destinos! quanto mais procuro
Sondar tua justiça indefinida,
Razão de ser do Mundo, fins da Vida,
Menos te entendo ou mais me sinto obscuro!
Dir-se-ia que nascemos, nós, os poetas,
Para imanentes, íntimas, secretas
Ânsias de um Ser-Criador a tudo atento.
E como Deus, só Deus, alcança o incriado,
Acaba o nosso estéril pensamento
Sucumbindo num cárcere fechado...
A ternura pela imagem materna – seu único e fiel amor de toda a vida – ele a exprime neste soneto:
Certo não quis o espírito divino
Dar-me a ventura de uma companheira.
Nascido só, vivi desde menino
Sem alma irmã, uma existência inteira.
Mas não blasfemo: tive a verdadeira
Afeição neste mundo pequenino:
O amor de minha Mãe, – esta clareira,
Mesmo na escuridão do meu Destino.
Só por ele abençôo o meu nascimento.
Ensinou-me que há puro sentimento.
Virtude, abnegação, amor profundo;
Só por ele valera ter vivido,
Mesmo só, desolado, incompreendido,
Entre as nefandas perversões do mundo!
Em Holocausto e O Pó das Sandálias o poeta retoma aquela atitude de tensão sentimental que fez do Solitudes um livro tão dramático e singular. Assimilando embora novos elementos líricos, que enriquecem a sua sensibilidade, ele conserva, entretanto, a mesma visão da vida e das criaturas. Posto sem alterar essencialmente a tonalidade melancólica e desencantada do seu espírito, Pereira da Silva, em Holocausto, assume um ar evangélico, de uma gravidade quase fúnebre, para pregar a sua filosofia de desilusão e amargura:
....................................................................
Irmãos na vida curta e atormentada!
Não semelha a existência uma escalada
Tanto mais bruta quanto mais veloz,
Na qual Poder algum vela por nós?
Em verdade vos digo! a nossa mente
É frágil como um vidro refrangente.
Tudo reflete; mas de modo tal
Que não distingue se o faz bem ou mal.
....................................................................
Faltou-lhe, nos livros anteriores, o sentimento do povo. Não teve sentido social a sua Poesia. Embora tenha vindo do povo, só raramente ele lhe sentiu as angústias e os sofrimentos. Sente-se a ausência do povo – porque em quase toda a sua obra só há permanente e real a presença do poeta. Mas, em O Pó das Sandálias, Pereira da Silva abre os olhos para ver a miséria das multidões humilhadas e ofendidas, e o seu coração palpita de comovida melancolia diante do sofrimento dos seus irmãos sem pão e sem abrigo. Em vários poemas, neste livro, ele canta os pobres e os humildes, os que sofrem e os que são tristes (“Joana”, “Caminhos”, “Os humildes”, “Os caminhos do Mundo”, etc.). São versos –, todos eles, em que o poeta revela “o respeito cristão pela humildade”. Em O Pó das Sandálias, aliás, numa sondagem psicanalítica, Pereira da Silva revela-nos o mistério da sua dor sem remédio:
Talvez a minha infância desolada,
Humilhação de alguém, um mal qualquer,
Numa insídia, um desgosto de mulher,
Foi a causa de toda essa amargura
Que a Fé não move e que a Razão não cura.
Há uns versos do poeta que contêm a confissão da sua irremediável situação de marginal na vida:
Oh, deixai-me ficar à margem da corrente
Desta Idade febril, em cujo turbilhão
Os que vivem do Ideal sabem que fatalmente,
Anônimos e sós, nada conseguirão...
Os caminhos dele são sempre os
Caminhos dos Humilhados,
Desoladores caminhos
Onde erraram meus cuidados
Entre pássaros calados
E árvores mortas sem ninhos...
E pensando no seu próprio destino, em outro poema, Pereira da Silva confessa afinal:
Cheguei à certeza dura
De que há destinos mesquinhos:
Não chegarão à ventura
Por nenhum dos seus caminhos...
Nessa obra extensa, sólida e uniforme, Beatitudes, Holocausto e Pó das Sandálias, malgrado o natural encantamento que devera ter causado ao poeta o êxito de Solitudes, são livros de melancolia, angústia e pessimismo. A agonia e a tristeza, o desconsolo e o abandono, eis as notas permanentes de todos eles. O ritmo é o mesmo. É o mesmo o tom elegíaco. É a mesma a densidade das graves sombras melancólicas que cobrem esses três livros. Na raiz de todos eles, um incurável pessimismo niilista, consangüíneo do pessimismo de Leopardi e Quental. Só em 1928, com os poemas de Senhora da Melancolia, se desanuvia um pouco o espírito do poeta. Uma doce claridade sentimental, tardia e débil, mas generosa, ilumina-lhe a alma. Sente-se por isso, nos livros de 1928 e 1940 (Senhora da Melancolia e Alta Noite), uma modificação nítida no espírito e no estro do poeta. A sua técnica se enriquece de ritmos novos, os metros são mais variados, os motivos menos sombrios. O poeta incorpora, à sua lírica a redondilha, o setissílabo, mais adequado à confidência amorosa. Há uma certa nota geral de pacificação na obra de Pereira da Silva, embora não desapareça a substância de tristeza e pessimismo que é a nutrição essencial da sua inspiração. Em Alta Noite essa reconciliação com a vida é mais pronunciada, o poeta tem momentos felizes de expansão lírica, em que – coisa tão rara em sua obra! – chega a cantar a ventura do Amor e até a Felicidade, como em “Nosso Romance e Felicidade”:
Felicidade, eu não descri de ti.
No que vi,
No que ouvi,
No que sonhei na flor da juventude,
No vício e na virtude
Nunca pude encontrar-te, como quis,
Dama de áureo cabelo e ar feliz!
Nunca pude encontrar-te. A vida inteira
Vim passando a esperar-te, e a cada dia
Pensava: “ela há de vir, essa Estrangeira
Que só eu compreenderia.
Ela há de vir, hoje, amanhã... que importa?
Quando menos cuidar,
Ela há de vir bater à minha porta,
Que se há de abrir, por si, de par em par,
E eu lhe direi, vendo-a tão loira e linda:
‘Há muito eu te esperava. Sê bem-vinda!’”.
Os seus últimos poemas, ainda inéditos, contudo, guardam todas as características essenciais do poeta – o tom elegíaco, o subjetivismo magoado, o pessimismo sem revolta – mas tomam uma direção ostensivamente religiosa, o que era, de resto, velha tendência do seu espírito.
O poeta cristão
Como acontece com André Gide, “Deus era o centro do seu drama”. Mas terá sido Pereira da Silva um poeta cristão? A influência da Igreja, na sua obra, é clara e permanente. Não sabemos ao certo se ele foi um católico militante. Talvez não tenha sido. Mas foi, sem sombra de dúvida, um bom cristão, sincero e humilde, que amou, sentiu e compreendeu, não só o rito da Igreja, mas a doutrina do Evangelho. Por todos os versos dele, como notou o Sr. Adelmar Tavares, ressoa um órgão de templo cristão e erra um perfume de turíbulo de altar. Ficou-lhe, na verdade, para toda a vida, no fundo do coração, aquele envolvente perfume de incenso com que o seu turíbulo de “croinha” embalsamava o ar da igrejinha humilde de Araruna. Como o próprio Pereira da Silva conta, a sua alma aspirava incenso e ele tinha os ouvidos sonoros dos sinos festivos de sua terra. Sabia de cor o “Mês Mariano”. Guardava, viva, na memória, a recordação do seu tempo de acólito, de “croinha” da Capela da Conceição, quando soprava as brasas do incensório, envergava a opa e a batina, repicava os pequenos sinos álacres que alvoroçavam o velório humilde da Serra de Araruna e tangia as profundas badaladas do sino grande que quebravam, plangentes e profundas, o silêncio grave da Borborema, convocando as almas, pelas Ave-Marias, para a oração e o recolhimento... Como São Francisco de Assis, ao qual tantas vezes o compararam, Pereira da Silva era na solidão que ia buscar o segredo da paz interior. Mas a essa interminável solidão associava sempre o nome de Deus, cuja presença não abandona jamais a sua poesia. Entretanto, mesmo que não tivesse sido um católico militante, Pereira da Silva teria sido um autêntico poeta cristão. Como adverte o Sr. Álvaro Lins,
o cristianismo de uma poesia independe às vezes da religião pessoal do poeta. Compreendemos que isso acontece, uma vez que houve poetas cristãos antes de Cristo. Virgilio foi um deles. Theodor Haecker estudou-o, num dos seus livros, sob este aspecto mesmo, que é um título e uma epígrafe: Virgílio, Pai do Ocidente. E o crítico alemão explica que esta denominação provém da sua certeza de que Virgílio foi um poeta cristão sem conhecer o cristianismo. E poeta cristão, sobretudo, Virgílio o foi porque soube situar nos seus devidos planos os valores humanos e naturais; porque soube valorizar, como realidades físicas e metafísicas, o homem e a natureza.
De resto, é como muito bem observa o ilustre crítico e ensaísta:
O poeta cristão tanto eleva as coisas pequenas e as criaturas simples até Deus, como anima as coisas com a presença e a sensação de Deus. Cumpre assim a sua missão fundamental: intermediário entre Deus e os homens. Para tanto, ele consegue viver dois estados extremamente diferentes: ora fica infinitamente pequeno e pecador para falar em nome das criaturas; ora se torna sábio, vidente, profeta, com uma memória e uma visão extraterrenas, para transmitir aos homens as mensagens do Criador.
Pereira da Silva, encarada a sua poesia cristã deste ângulo, foi, sem nenhuma dúvida, um grande poeta cristão, e este não é o título menor da sua carreira literária, tão humilde e modesta, na aparência, mas, na realidade, tão gloriosa e ilustre. De resto, seus últimos poemas, que permanecem inéditos, são autenticamente cristãos: “Os milagres de Cristo” e “Os homens de Deus”. O primeiro é um comentário lírico dos Evangelhos:
Jesus apazigua a tempestade
Jesus com seus discípulos, um dia
Navegava. E fazendo a travessia
Do lago quieto, em meio deste, o vento
Soprava desigual e tão violento
Que ficaram sem calma os remadores,
Apesar de famosos pescadores;
Entanto, entre as rajadas da nortia,
Como um justo, Jesus, calmo, dormia.
Foi, então, que um dos homens, o acordando,
– Mestre! exclamou. Estamos soçobrando!
Erguendo-se, Jesus de Nazaré
Disse-lhe e aos mais: – Homens de pouca fé!
Pois vereis como eu domo os elementos!
E, erguendo a mão, fê-la parar os ventos.
O segundo é um grave poema, em que o poeta canta os Santos da sua devoção, – os grandes apóstolos da formação espiritual do Brasil:
Homens de Deus
Homens de Deus, homens cujas ações,
Cujas palavras, gestos e atitudes
São eternos exemplos de virtudes
Para a série sem fim das gerações;
Homens de Deus, homens que aqui chegados
Sofreram coisas que ninguém diria,
Menos, de certo, pelos seus pecados
Que pelo amanho da Selvageria;
Homens de Deus, porque, só sendo tais
Como foram, de vida penitente,
Poderiam vencer os animais,
Selvas e tribos deste Continente;
Homens de Deus; pois mesmo nos instantes
Mais augustos de suas existências
Nunca deixaram de se ver confiantes
No milagre das próprias resistências;
Homens de Deus, porque, tanto na guerra
Como na paz, se aviram nobremente
Para glória maior da nossa Terra
E maior perfeição de sua gente;
Homens de Deus, porque pela piedade
Ou pelos surtos de humanização
Deram tais provas de brasilidade
Que outros não deram, nem jamais darão;
Homens de Deus, porquanto de alma forte
Tudo afrontaram por seus bons intentos:
Incertezas da vida, horror da morte,
Os perigos das vagas e dos ventos;
Deixai que minha Musa, mesmo inglória,
Louve, como um dever, vossa memória!
Se é certo, porém, que no fim da vida a sua Musa, tranqüila e pacificada, se curvou, de joelhos, diante da Igreja, nos seus primeiros tempos, apesar da sua vocação cristã, o poeta era inquieto e angustiado, tinha a alma devorada de incertezas. Nesse tempo, o tempo amargurado de Vae Soli! e Solitudes, e mesmo de Beatitudes, de O Pó das Sandálias, de Holocausto, mais do que o poeta da Tristeza, da Dor e da Solidão, Pereira da Silva foi o poeta da Dúvida. Essa a superioridade e o interesse maior da sua Poesia cristã. Não era uma poesia simplesmente religiosa, destituída de inquietação e dúvida; era, ao contrário, uma poesia atormentada de interrogações dramáticas:
Artes, Religiões, Ciências, filosofia,
Isso tudo... isso tudo... O que vale isso tudo?
Ou então exclamava:
Fundam-se os Deuses vãos no mesmo nada humano...
E, ainda, em “Finalidades”:
Que vale haver eu feito tudo quanto pude
Pela glória na luta mais renhida?
A carne é triste. O espírito duvida.
O eu vacila na vicissitude...
Aqui como ali, na última como na primeira atitude, Pereira da Silva foi sempre, jovem, um poeta essencialmente cristão, pela humildade da sua atitude, pela ternura da sua voz, pela devoção do seu espírito.
Destino da poesia
Tudo, nesta hora grave da história da humanidade, é um infinito e dramático tumulto. Emergimos sem dúvida das sombras noturnas e tormentosas da opressão e da guerra – dos sofrimentos, das incertezas e das angústias da opressão e da guerra. Mas a aurora que começa a iluminar o céu é ainda tímida e hesitante: não consegue talvez afastar dos nossos olhos alguns dos mais espantosos fantasmas que nos apavoram... Após a longa noite de angústia, cortada de tempestades e pesadelos, e ao raiar dessas claridades dúbias mas felizes, que estrela virá guiar o nosso espírito, que nova luz virá acaso iluminar os passos do nosso áspero caminho? Essa luz será, decerto, a Paz; essa luz será também, sem dúvida, a Liberdade; essa maravilhosa luz será, sobretudo, o Espírito. E eu acredito que nesse instante inaugural da Idade Nova, que já não será propriamente o da Vitória, mas o da Ressurreição e da Serenidade, a luz da Paz, a luz da Liberdade e a luz do Espírito entrarão no dilacerado coração dos homens pela mão generosa da Poesia. Teremos inevitavelmente então um renascimento da Poesia na face da terra. A Poesia – que durante os dias terrivelmente trágicos da guerra foi fonte inesperada de bravura, de consolação e dignidade – na resistência francesa, na intrepidez britânica, no ímpeto americano, na obstinação russa e no destemor da juventude heróica do Brasil – será agora a nossa companheira na Paz, compassiva e compensadora. Restaurando o contado do homem do nosso tempo com os valores eternos do espírito, ela se vivificará ao contato do povo – dos sofrimentos e das aspirações do povo – e se para alguns poderá vir a ser refúgio ou evasão, para muitos há de ser participação e luta. “O mundo de hoje está à espera da Poesia”. E a Poesia – tem razão o grande crítico brasileiro – não pode viver sem um permanente contato com a vida, sem uma íntima compreensão entre os poetas e o povo. Assim como, depois da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas, tivemos o Romantismo, agora, após tantas lutas e sofrimentos, após uma guerra que foi uma autêntica revolução, porque abalou os próprios fundamentos do mundo, sobrevirá fatalmente uma nova fase poética, e como observa Tristão de Athayde, não virá contra o Modernismo ou contra o Surrealismo, porque não virá como uma reação, mas como uma conseqüência: – virá depois... E essa onda de espiritualidade que há de envolver o mundo do nosso tempo, restaurando o prestígio da Cultura, da sensibilidade e do ideal, talvez venha revelar-nos a existência daquela “Poesia pura” com que sonhou Valéry – uma poesia essencial e incontaminada, liberta da tirania das formas verbais e das exaltações particularistas, uma poesia que afunde suas raízes no próprio coração do povo – na seiva do sofrimento, da ternura, das aspirações do povo – e que seja tocada das luzes mágicas do maravilhoso –, poderosa, alta e grave como um grito de libertação. E quando interrogarmos o nosso destino, na claridade ainda trêmula e tímida desta aurora, a Poesia será o astro que há de conduzir os nossos passos no roteiro do Futuro – e essa bela e grave Poesia – sendo o eco do ideal das vocações fundamentais do homem – terá os nomes eternos que identificaram sempre a felicidade humana em todos os tempos: será a poesia da Justiça, do Amor e da Liberdade!