Em novembro, a 70ª Feira do Livro da Capital recebeu o casal Ruy Castro e Heloisa Seixas para falar de vida, obra e parceria, além dos dois recentes livros “O Ouvidor do Brasil”, de Ruy, com 99 textos sobre Tom Jobim; e “O Livro dos Pequenos Nãos”, de Heloisa, que explora o poder das escolhas. Ruy escreveu biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda, reconstituições históricas sobre bossa nova, samba-canção e Rio dos anos 1920, entre outros livros. Heloisa foi quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti e escreveu obras de grande densidade como “O Oitavo Selo” e Agora e na Hora”. Em 1990, conheceu Ruy após ler “Chega de Saudade” e desde então são parceiros na vida e nas letras, mesmo que só palestrem e não escrevam juntos. O CS teve dois dedos de prosa com o casal que está junto há quase 35 anos.
Ruy, gostaria que tu me falasses sobre este livro com 99 crônicas sobre o Tom?
O livro começou no dia que teve na Academia Brasileira de Letras teve a pré-estreia do filme “Tom e Elis”. Estamos vendo o filme, eu sentado na primeira fila. Olhei para trás e pude sentir fisicamente as ondas de amor da Academia. O Tom não morreu, o Tom é amado, como nunca foi, sei lá, talvez nem em vida tenha sido tão amado. Aí me ocorreu o seguinte. Estou fazendo essa coluna na Folha desde 2007. Fui dar uma olhada nessas crônicas, pedi a minha assistente para dar uma levantada, qualquer referência ao Tom, você copia e faz. Eram 120. Li todas e descartei 30. Aí escrevi nove inéditas. Mas não era aleatório.
Havia uma uma coisa em comum entre elas, que era a preocupação do Tom com a natureza, com o ambiente, com a conservação das cidades, contra a desumanização da vida e mais. Dei uma uniformizada na coisa, reescrita em algumas e saiu “O Ouvidor do Brasil”, porque o Ouvidor é aquele sujeito que, como tem a rua do Ouvidor no Rio, é a pessoa com quem você se reforça, com quem se queixa de alguma coisa.
O Tom era também o Ouvidor porque ele, como músico, ele ouvia o Brasil, ouvia os sons do Brasil, não só da música popular, porque ele e o Vinicius tinham tias que tocavam piano e cantavam. Tom nasceu em 1927, Vinicius em 1912, então as tias deles tocavam a música brasileira do século XIX, modinhas e valsas. O Tom teve uma cultura auditiva, do passado musical brasileiro, extraordinária. E também ouvia a floresta, as árvores, os pássaros, ele tinha um coração de pios, ele batia papo com os passarinhos, com os pios. Apesar de ser um garoto jovem, criado em Ipanema, criado na praia, nadava de um posto a outro, era um peixe, mas tinha um pé no mato, porque a família dele tinha um sítio no interior do estado do Rio. Ele era catedrático em urubu, capaz de distinguir 30 espécies ao ano.
Heloisa, eu queria saber as escolhas narrativas mais recentes e principalmente de “O Livro dos Pequenos Nãos”?
As minhas histórias densas desde o início. O meu primeiro livro, “Pente de Vênus”, que aliás saiu por uma editora aqui do Rio Grande do Sul, a Sulina tinha o subtítulo “Histórias do Amor Assombrado”. O assombrado era no sentido de sombra, de mistério, não necessariamente uma coisa sobrenatural. E aconteceu que eu realmente fiz três livros que tinham a ver com a morte ou a quase-morte.
Eu até já fui chamada para participar de seminários sobre morte. Escrevi “O Lugar Escuro” que foi o livro sobre todo o processo de demência pelo Alzheimer da minha mãe. Eu escrevi “O Oitavo Selo”, que é dos confrontos do Ruy com a morte. E escrevi, mais ou menos na mesma época, o Agora e na Hora, que é totalmente ficção, mas é a história de um escritor que sabe que vai morrer e quer ter a última palavra sobre a própria morte. Tem uma homenagem para o Marcos Santarrita. E uma história assombrosa, porque quando eu comecei a escrever, o Santarrita estava ótimo. Eu só me inspirei nele, eu não ia nem dedicar o livro a ele. Eu sabia que eu tinha me inspirado nele, porque eu achava que ele era um escritor que não tinha tido o sucesso que merecesse.
Um dia, há muitos anos, ele falou pro Ruy que ele escrevia, guardava tudo, e que se ele não conseguisse ser escritor, ele ia se matar. Só que esse escritor fictício, que está com câncer de pulmão, e ele quer se matar em cima dos originais, porque ele quer escrever os originais definitivos e fazer o final insuperável. Porque aí ele morre com um revólver. Dá um tiro na cabeça. Só que aí, enquanto eu estava escrevendo esse livro, o Santarrita desenvolveu um câncer de pulmão e morreu. Eu fiquei com tanto medo que eu não conseguia acabar. Eu levei muitos anos para acabar o livro, porque eu tinha medo de morrer quando acabasse. Por causa desses três livros, eu fiquei meio marcada pela coisa da morte.
Ruy, e o jornalismo queria que tu falasse sobre esta profissão, contando um pouco da tua carreira?
O jornalismo exige a vocação. É uma palavra que a minha geração foi ensinada a desprezar. Talvez você possa se condicionar, a a ser um dentista, mas você só será um jornalista se tiver a fome e a sede da informação. Você quer aprender o que aconteceu, seja algo de meia hora atras ou há 3 mil anos, na Grécia? Eu aprendi a ler muito cedo, com quatro anos e meio. Aprendi a ler no jornal, por causa da minha mãe.
Desde os cinco anos de idade, há 71 anos, estou com 76, não passou um dia que eu não abrisse um jornal. A vida me entrou pelos olhos através do jornal. Isso faz uma grande diferença, porque se você aprende a ler pelo jornal, é uma coisa. Se você aprende a ler pela cartilha, é outra coisa. Se você lê no jornal, você está entrando no mundo. A primeira página do jornal é um mosaico.
Isso te abre a cabeça para tudo. Então, você se habitua a receber o mundo pela palavra escrita. É muito natural que você queira deixar de ser apenas um leitor passivo e se tornar agente da coisa, trabalhar no jornal. Coincidiu que, na época, tinha muitos filmes americanos que se passavam em redações. O herói do filme era um repórter, Você entrava naquela redação americana, sempre aquela barulheira, aquela coisa, sempre o personagem falava depressa.
Era tudo engraçado. Aí, na primeira vez que eu entrei numa redação de verdade, que foi a do Correio da Manhã no Rio, eu vi que era aquilo mesmo. É isso que eu quero. Com 19 anos recém-feitos, já era um repórter não contratado do jornal mais importante do Brasil, o Correio da Manhã, Passaram-se mais de 23 anos, eu comecei a ter umas ideias que não cabiam em revista e no jornal, teriam que caber num livro. Contar a história da Bossa Nova. Liguei para o Luiz Schwarcz, do Companhia das Letras e falei da ideia. Eu tinha contato com ele antes da editora ser inventada. Ia contar a história mesmo, não ia fazer interpretação de letra, nem sociologia.
Era contar quem eram aquelas pessoas, como se conheceram, onde aprenderam a fazer aquilo, como se comunicavam. Seria uma história de gente muito jovem, a Nara Leão tinha 16 anos quando começou a fazer parte daquilo tudo, o mais velho deles era o Ronaldo Bôscoli, que tinha 32 anos, já era velho. O Luiz Schwarcz topou e eu já saí do telefonema trabalhando. Comecei a fazer o livro da maneira que eu imaginava que ia fazer, entrevistando gente, conversando com as pessoas que tinham feito parte da coisa. Aí, no meio do livro, me ocorreu fazer a biografia de Nelson Rodrigues. Aí terminei o “Chega de Saudade”, deu muito certo, em lista de mais vendidos. “O Anjo Pornográfico” deu certo também. Passei o resto da vida trabalhando em livros, mas me orgulho que não houve um dia nestes 30 e poucos anos que eu não tivesse ligado como colaborador fixo a um órgão de imprensa.
Fui colaborador na Folha de S. Paulo, Estadão, depois Jornal do Brasil, agora Folha de novo, o que me obriga a manter o mínimo de atenção ao noticiário, a saber o que está acontecendo. Uma coluna quatro vezes por semana, não posso fazer abobrinhas, tem que ser em cima da atualidade.
Heloisa, o “Chega de Saudade” é meio padrinho da história de amor de vocês. Me conta.
A gente se conheceu através de uma amiga comum que nos apresentou. E nós saímos os três para almoçar, conversar e tal. Eu contei muitas histórias, inclusive, que estão no livro “ TerraMareAr”, as de Moscou. Conversamos muito. Ele ficou interessado em mim. Eu estava num período sem querer namorar ninguém. E aí ele me deu esse golpe baixo. Ele tinha vindo ao Rio com dois exemplares do “Chega de Saudade”, que tinham acabado de sair do forno.
Tinha deixado um na portaria do João Gilberto e o outro estava na mala lá no hotel. Ele estava hospedado no hotel, na avenida Atlântica, no Rio, onde ele ficava sempre. Aí, nós saímos e almoçamos em um restaurante do Leme com essa amiga nossa. E ela veio nos trazer. Foi deixar ele no hotel e a mim em casa. E quando ele passou no hotel, ele pediu a ela para esperar que ele ia lá em cima pegar alguma coisa. Ele foi lá e pegou o exemplar que ele tinha trazido para o Tom Jobim e acabou me dando. E ele ia voltar dali a 15 dias para o lançamento do livro em uma livraria do Rio de Janeiro. Seria a festa de lançamento, a primeira noite de autógrafos do “Chega de Saudade”. Era o ano de 1990.
Aí, nesses 15 dias, eu li o livro inteiro, o “Chega de Saudade”. Pensei, nossa, como esse cara escreve bem. E disse, quero ser amiga dele. Assim, nós estamos amigos até hoje. Há mais de 34 anos.
Matéria na íntegra: https://www.correiodopovo.com.br/arteagenda/entrevista-com-ruy-castro-e-heloisa-seixas-obras-carreira-e-parceria-de-vida-1.1567357
06/01/2025