Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Niterói: Saudades do Futuro

Niterói: Saudades do Futuro

 

Sou carioca e vim para Niterói com oito anos de idade. E como não existe país maior que a infância, Niterói me capturou desde cedo, tornando-se, com o passar do tempo, um excessivo amor, uma quase obsessão, que começou pelo fascínio da baía da Guanabara.

 “Ingá”, “Flechas”, “Icaraí”, “Visconde do Rio Branco”. Nomes que soam como os de um tempo mítico, as velhas barcas Rio-Niterói, como se formassem uma silenciosa melodia: “Flechas”, “Icaraí”, “Paquetá”. Sinais de chegar e partir. Eu tomava a barca de Icaraí para Santa Rosa.

Porque houve, sim, uma barca: atrevida, senão tímida, ou desvairada, que atracava todos os dias no porto dos Salesianos. Fui vela, timão e passageiro dessa barca imaterial. Zarpava da Comendador Queiroz, às seis da manhã. Seguia pela Mariz e Barros, cortando as ruas sonolentas. As janelas bocejavam e as casas adquiriam enredos inventados. Percorria aquele espaço-tempo como quem nada numa torrente de esperanças.  

Eu via a Notre Dame, de Victor Hugo, nas formas neogóticas de Nossa Senhora Auxiliadora. Imaginando personagens. E quem chegava era padre Marcelo, com Bach e César Frank. E de repente, a Fuga em Ré Menor desatava um grande temporal. Aquele não era um padre, mas uma condição meteorológica. 

Meus patins corriam pelo Campo de São Bento. E passeios nas praias de Adão e Eva. Tardes brasileiras, que se deitavam preguiçosas, nos romances de Alencar, Macedo e Machado. Como eram belas, manchadas de azul, aquelas tardes!

Nem me faltava a alameda Carolina, espécie de refúgio secreto, onde eu me perdia, em passeios e leituras, assim como na boca da ilha de Boa Viagem, de beleza outrora esquecida, com sua ponte frágil. Pensava nas caravelas de Portugal. Nas moedas preciosas sob as areias da praia. Niterói me pertencia de direito e de fato. As ilhas e dobrões que até hoje me escapam.

Como bom niteroiense, tornei-me arqueólogo de uma paisagem devastada, preso aos vestígios, às ruínas deixadas pela selvagem especulação imobiliária, para recompor meus fragmentos, minha infância e a memória da cidade. Invicta, mas nem tanto, porque lotearam boa parte do céu, com o cipoal de edifícios, devastaram as dunas de Itaipu e aterraram sua lagoa, ferindo a beleza primitiva das praias oceânicas.  E como perdoar as mortes no Morro do Bumba?

 Tenho saudades do futuro: uma Niterói praticamente sem carros, boa parte da qual reflorestada, com barcas saindo de muitas partes da baía, sem violência, como se fosse uma pequena república democrática.

O Globo, 24/07/2015