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Eu Sou Beirute

 

Um dos lugares que mais me encantam no Rio de Janeiro é o pequeno Oriente Médio da rua da Alfândega, com seu perfume ecumênico das mais variadas especiarias, parte da cidade que visito, desde os meus oito anos. Diante de meus insistentes pedidos, meu pai me levava às lojas sírio-libanesas, onde senhores idosos e educados surgiam dentre montes de confeitos coloridos que me hipnotizavam por completo. Ia com um caderno para reunir palavras exóticas, entre tâmaras e nozes, e me intrigava a beleza dos rabiscos em árabe, a pronuncia misteriosa. Até hoje o árabe guarda um prestígio especial para mim, pois nele se misturam a cultura popular carioca, os doces coloridos e os antigos donos das lojas da Alfândega.

Terminada a guerra civil, o Líbano tornou-se para mim uma extensão do Saara carioca. Eu passava as férias no coração de Beirute, entre a linha verde e a Universidade de São José. Era um país devastado, que saía cheio de feridas e incertezas de um cenário físico e moral, em mil fragmentos, embora permanecesse intacta a sua cultura plurissecular. Não esqueço quando tomei chá no terceiro piso de um prédio parcialmente em ruínas, que mal se equilibrava em sua estrutura, tal como o Líbano daquela quadra. A Síria dominava o país e seus soldados ocupavam-se da segurança nos checkpoints espalhados pela cidade. Vi a humilhação dos campos de refugiados palestinos, Sabra e Chatila, ferida de um povo que não para de sangrar. O Líbano foi para mim a escola que abriu caminho para tantos rumos, como a tão amada Síria e os meus estudos iniciais de hebraico.

O atentado recente em Beirute, em sincronia com os de Paris, deixou 43 mortos e mais de 200 feridos, em ação do Isis contra o Hezbollah. Foi o maior desde os anos 1990 e preocupa porque o Líbano é a nação que mais vem sofrendo com o desastre humanitário da Síria. Abriga hoje mais de um milhão de refugiados, como não fez, aliás, nenhum outro país. O sistema político libanês é frágil e o esforço de algumas lideranças responsáveis concentra-se em evitar a todo custo o risco de um colapso, dada a proximidade com o olho do furacão.

É preciso apoiar decididamente o Líbano, como um barômetro da região, aliado essencial no desenho futuro da paz da região, com o fim do califado, a saída de Assad, as eleições livres na Síria, a redemocratização real do Iraque e a imediata constituição do Estado Palestino, com o fim da prisão a céu aberto da Faixa de Gaza. Ancara também terá muito a dizer sobre o que fez e o que deixou de fazer contra os inimigos de Damasco. Nem ficarão em silêncio os países do Golfo e o Irã.

O fato é que as grandes potências subestimaram o Isis e a guerra não é a única solução, porque se trata de um combate de mentalidades. Enquanto não se reconhecer que o Isis é também filho do Ocidente, não haverá remédio eficaz. O Líbano dará sua contribuição para vencer a guerra, mais do que as bombas, e será pela cultura da paz.  

O Globo, 02/12/2015